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“Ele cuspiu na minha boca como se estivesse fazendo uma oração”: da recusa à autocensura enquanto garantia de expressividade emocional

“Ele cuspiu na minha boca como se estivesse fazendo uma oração”: da recusa à autocensura enquanto garantia de expressividade emocional

Nos primeiros meses de 2025, alguns veículos de comunicação publicaram as reações da cantora Lorde a alguns álbuns de Madonna. Há um importante motivo para que isso tenha sido difundido noticiosamente: ao lançar o seu quarto disco, “Virgin”, em 27 de junho deste ano, a neozelandesa chocou os fãs pela ousadia de inserir, no encarte, uma polêmica fotografia, em que vemos a vagina da cantora, por detrás de uma calça transparente. É uma imagem que diz muito sobre o conteúdo de suas letras, quanto à necessidade de desabafar e se expressar, inclusive no que tange a questões sexuais. Curiosamente, houve quem enxergasse este exibicionismo corporal como a culminância de um processo de desvelamento, visto que a capa do primeiro disco da artista (“Pure Heroine”, de 2013) apresenta apresenta letras brancas num fundo preto, ao passo que ela expõe seu rosto, como se fosse uma pintura de aquarela, na obra-prima “Melodrama”, de 2017, e mostra-se em ‘contra-plongée’, com exposição glútea, em sua obra mais “feliz”, “Solar Power”, lançado em 2021. “Chegou a hora de explicitar aquilo que tantos escondem”, parece gritar a cantora, nos complementos imagéticos de seu ótimo trabalho musical…

Nascida Ella Marija Lani Yelich-O’Connor, na cidade de Auckland, em 07 de novembro de 1996, esta jovem cantora destaca-se por sua voz grave e pelas composições com fortes traços confessionais. O álbum “Virgin” distribui onze faixas em pouco mais de trinta minutos de duração, e recebeu comentários mui elogiosos por parte da crítica especializada e dos fãs da cantora. Na faixa de abertura, “Hammer”, há um refrão que parece emular ruídos orgásticos, depois que ela canta que “há paz na loucura sobre as nossas cabeças”. Não é justamente isso uma metáfora para o sexo? Em outra canção, “Man of the Year” (faixa 04), ela pergunta quem a amará, “agora que estou destruída e exposta”. E continua: “vivo o meu dia como quem surfa em uma onda/ Agindo do jeito que eu quero/ Bochecho, cuspo, me masturbo/ Os dias passam num borrão”. Recado contundente!

Conforme era esperado, as letras deste álbum causaram um bem-vindo rebuliço, estimulando os ouvintes a encararem sem moralismos os seus dilemas existenciais, ecoando algo que aparece na melhor canção do disco, “Current Affairs” (06), em que ela descreve algo que “fez o sangue gelar”, logo na abertura: “geralmente começa assim/ Tu estás na luz, então está no escuro/ Então, alguém joga um sinalizador, tu experimentaste a minha calcinha/ Eu sabia que nós estávamos fodidos”. Nos versos do desfecho, uma voz repete: “garota, tua buceta é uma delícia, me prendeu de jeito”. Definitivamente, Lorde não aderiu à autocensura que caracteriza algumas posturas neogeracionais, cada vez mais intimidadas quando precisam encarar temáticas sexuais, sobretudo através do prisma feminino!

Além das canções citadas, “Virgin” encontra pontos altos na dançante “What Was That” (02), primeira a ser lançada enquanto ‘single’; na existencial “Shapeshifter” (03); e na faixa lenta que encerra o disco, “David” (11), que justifica o título do álbum a partir do seguinte verso “se eu tivesse virgindade, eu a teria dado também”. Na capa do disco, uma versão em raio-X da imagem anteriormente descrita, em que, por detrás de um zíper, notamos a presença de um DIU (Dispositivo Intra-Uterino), método contraceptivo de alta efetividade, que demonstra que o eu-lírico não rejeita uma promiscuidade saudável, em termos de exercício livre da própria sexualidade. Um disco que vai na contramão da pudicícia ‘pop’, ainda que as canções não contrariem alguns padrões de vendabilidade contemporânea, como as durações inferiores a três minutos, associadas a um critério sustentacular dos serviços de ‘streaming’. Ao obedecer a determinadas convenções do mercado fonográfico, Lorde foi também autoral e subversiva!

Dando prosseguimento a um caminho já trilhado por Patti Smith, Joni Mitchell, Alanis Morissette e pela própria Madonna, entre tantas outras, Lorde oferece-nos canções inteligentes e entremeadas por paradoxos rítmicos (às vezes, a melodia é contagiante, mas a letra é depressiva), servindo como porta-voz orgânica, em contínua transmutação, de uma conjuntura musical que não disassocia os devaneios íntimos das motivações coletivas. Afinal, o direito ao prazer sexual — ainda subestimado, em sua faceta estrogênica, por causa do machismo estrutural que atravessa a nossa sociedade — é uma exigência política que merece ser cantarolada, enquanto ressignificamos os traumas psicológicos, geralmente derivados de abusos adolescentes, provenientes de parentes, cônjuges ou estupradores disfarçados de companheiros. Tudo isto aparece neste valoroso álbum que é “Virgin”: “na academia de ginástica, estou exorcizando todos os meus demônios, faço eles darem no pé”, canta Lorde na letra de “If She Could See Me Now” (10). Eis a nossa recomendação efusiva!

Wesley Pereira de Castro.


Fonte da imagem: originalmente disponível em: https://www.reddit.com/r/popheads/comments/1lmdthh/pitchfork_review_lorde_virgin_76/

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