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“Ela morreu bem velhinha, mas lúcida — e ainda contava histórias”… (uma resenha ensaística)

“Ela morreu bem velhinha, mas lúcida — e ainda contava histórias”… (uma resenha ensaística)

Na crise atual envolvendo o esvaziamento das salas de cinema, o alto preço dos ingressos não é o único vilão: deslocar-se para os locais onde estão situados estes cinemas — geralmente, no interior de ‘shopping centers’ — requer um extremo esforço psicológico, financeiro e de gerenciamento do tempo livre, cada vez mais exíguo sob a égide do Capitalismo. Além disso, os vícios comportamentais advindos da disponibilização compulsiva de produções clicherosas (mas sobremaneira agendadas, em termos midiáticos), típicas dos serviços de ‘streaming’, deixa os espectadores viciados em conteúdos mui similares, coligados por deixas tensionais que nem sempre indicam qualidade narrativa. O problema é bem mais complexo do que qualquer estatística permite averiguar…

Num trecho inicial do romance ensaístico “Últimas Décadas nos Cinemas (Livro-de-Bolsa)”, o autor Maurício Salles Vasconcelos escreve, em letras maiúsculas: “STREAMINGS SÃO INSTANTANEAMENTE SOLIDÕES”. Com isso, ele descreve uma conjuntura — de caráter também emocional — em que a “sombra da fantasia projetada na tela e no convívio aleatório da presença pública se faz doméstica”, de modo que imagens outrora associadas à coletividade e à possibilidade dos encontros passaram a reiterar um confinamento progressivamente voluntário. Para que sair de casa, então? A realidade torna-se difícil de ser acessada, visto que parte considerável dos conteúdos disponibilizados nestes serviços de ‘streaming’ se direciona justamente à fantasia alienante e estandardizada.

Num pressuposto aberto pela necessidade de proteção durante o período em que o mundo esteve sob o jugo da COVID-19, alguns festivais de cinema mantiveram a transmissão ‘online’, disponibilizando virtualmente os seus conteúdos. É assim que podemos acessar os títulos selecionados pelo Citronela Doc — Festival de Documentários de Ilhabela, com sede no litoral Norte do Estado brasileiro de São Paulo. Nas palavras dos organizadores do evento, que surgiu em 2021, trata-se de um festival que prioriza “um panorama do documentário brasileiro contemporâneo, buscando sempre uma diversidade temática, racial, social e geográfica”. Nesta quinta edição, os destaques entre os longas-metragens incluem filmes como “Tijolo por Tijolo” (2024, de Victória Álvares & Quentin Delaroche), “Mambembe” (2024, de Fábio Meira) e “Ritas” (2025, de Oswaldo Santana), para ficar apenas em alguns títulos amplamente elogiados e premiados.

Dentre os curtas-metragens, chamamos a atenção para a produção sergipana “Donas da Terra” (2025, de Ana Marinho), que dá continuidade àquilo que foi mostrado em “Velho Chico, a Alma do Povo Xokó” (2024, de Caco Souza — resenhado aqui), que concorreu no Festival de Cinema de Gramado, em 2024. Neste filme, fala-se sobre a perene luta dos indígenas que vivem na Ilha de São Pedro, no município de Porto da Folha, localizado em Sergipe, menor Estado do Brasil, onde vivem os habitantes do povo Xokó, infelizmente negados, por muito tempo, em seu direito elementar à identidade e à terra nativa. Neste curta-metragem, acompanhamos os depoimentos de mulheres que, segundo a sinopse, “ao retornarem às lembranças do período de lutas pelo território indígena Xokó, (…) destacam na narrativa coletiva novos personagens”. É quando sabemos da trajetória de Tia Enoi, uma líder comunitária, falecida em 2018, que educou várias daquelas mulheres, além de manter viva a tradição do Reisado e do ritual sagrado do Ouricuri.

A sequência inicial deste documentário é protagonizada pelo cacique aposentado seu Girleno, que, num álbum de fotografias, expõe registros de Tia Enoi, sua mãe, em imagens captadas pelo frei pernambucano Enoque Salvador de Melo, ativista da Teologia da Libertação, que, durante três mandatos, foi prefeito do município vicinal de Poço Redondo, e pela antropóloga Beatriz Góis Dantas, professora emérita da Universidade Federal de Sergipe. Ambos foram muito atuantes no apoio às causas defendidas pelos xokós e, por conta disso, foram perseguidos na época da ditadura militar. As depoentes do filme relatam situações em que foram oprimidas por assumirem a sua identidade indígena, sendo impedidas de conseguirem empregos, por exemplo. Elas dedicam-se à fabricação de panelas de barro, que, ao serem comercializadas nas feiras locais, ajudam na obtenção de víveres. Com enfoque na Antropologia Feminista, a diretora Ana Marinho, estende a sua pesquisa de Mestrado (“Gênero e Construção na Narrativa Coletiva: a Retomada da Retomada pelas Mulheres Xokós”) neste curta-metragem, que reverencia a memória de Tia Enoi, reconhecida como a Rainha do Ouricuri e que, por sua relevância em rituais católicos e de religiosidade indígena, ainda é uma presença bastante sentida nas cerimônias atuais. No filme, assistimos à apresentação de algumas garotas que dançam o Reisado, mantendo uma tradição festiva que é narrada com muita alegria pelas mulheres entrevistadas. É o tipo de situação que, em seu poderio cultural, concede validade a esta sessão doméstica, afinal balizada pela necessidade de encontro (e posterior entendimento) com o Outro. Nas palavras da diretora, as mulheres Xokó “rasgam o véu da opressão e fincam a bandeira da existência nas estruturas de poder”, sendo que as mulheres mais velhas são os alicerces para as novas gerações. Aplaudimos que isto seja documentado e acessibilizado, portanto!

Wesley Pereira de Castro.


Fonte da imagem disponível em: https://antropoarq.com.br/wp-content/uploads/2025/03/Mostra-RIOS_Filmes_Donas-da-terra_Ana-Marinho-3-1024×682.jpg

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