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Depressão: “não aguentamos mais!”, mas terminamos suportando. Até que…

Depressão: “não aguentamos mais!”, mas terminamos suportando. Até que…

No dia 04 de setembro de 2020, chegou ao catálogo Netflix um dos filmes mais aguardados do ano: a nova produção dirigida pelo premiado roteirista Charlie Kaufman, conhecido por suas tramas rocambolescas, envolvendo derivações masturbatórias e intensas crises existenciais, além de múltiplas referências literárias, filosóficas e cinematográficas. Confirmando as expectativas, “Estou Pensando em Acabar com Tudo” (2020) confirma a genialidade do realizador em pauta, numa trama que não pode ser facilmente resumida, nem confinada em qualquer gênero tradicional. Tentemos, ainda assim…

Baseado num romance homônimo do escritor canadense Iain Reid, vinculado ao subgênero do terror psicológico, o roteiro de “Estou Pensando em Acabar com Tudo” mantém os nomes (ou a falta deles) dos personagens originais e os eventos traumáticos que eles experimentam, mas a estrutura tramática obedece ao surrealismo extremamente peculiar de Charlie Kaufman. E ele acerta mais uma vez: o filme é brilhante – e desolador!

Quis uma feliz coincidência que este filme tão denso fosse lançado no mês em que se efetua no Brasil a campanha massiva do “Setembro Amarelo”, que visa à conscientização preventiva quanto ao suicídio. Porém, as intervenções relacionadas a esta campanha esbarram numa dolorosa constatação: nos demais meses do ano, muitos ainda consideram a depressão uma “frescura”. Definitivamente, não é. Sinto-me devastadoramente infeliz!

Voltando ao filme: logo no começo, ouvimos mais de uma vez a frase titular, sendo pronunciada pela personagem de Jessie Buckley – cujo nome é mencionado de maneiras radicalmente distintas ao longo da narrativa, até ser indicada nos créditos finais como “a jovem mulher” –, que está numa viagem de automóvel, ao lado de seu namorado Jake (Jesse Plemons). Neva bastante e eles estão avançando por áreas rurais, em direção à residência dos progenitores do rapaz. Eventualmente, visualizamos relances de um idoso zelador escolar, sendo alvo de zombaria pelos estudantes. Quem é ele? Talvez saibamos ao final do filme. Ou não…

Durante a viagem, Jake e sua namorada conversam bastante. Falam sobre poesia, literatura, peças musicais da Broadway, o próprio relacionamento, inúmeros assuntos. Mais de uma vez, a moça é flagrada pensando alto, pronunciando justamente a frase que intitula o filme. Mas muda rapidamente de assunto. Por vezes, ela é mencionada como pintora. Outras, como poetisa. E também como estudante de Física Quântica, garçonete, pesquisadora de gerontologia, etc.. A infelicidade é aflitiva! Não custa lembrar: estamos num filmaço legitimamente kaufmaniano!

Após uma série de eventos disfarçadamente perturbadores – porque obnubilados pela pujança dos diálogos –, o casal chega à casa dos pais, interpretados magnificamente por Toni Collette e David Thewlis. E falar mais seria estragar o doloroso prazer (ou agradável desprazer?) que é desvendar os enigmas deste filme psicanaliticamente desafiador. A tentação recorrente do suicídio surge como hipertrofia de um mal-estar desalentador. Piadas extremamente freudianas são despejadas, em meio a discussões sobre uma obra-prima cassavetesiana, números de dança inauditos, cisões temporais e uma homenagem a um clássico de Ingmar Bergman [1918-2007] na seqüência final. E falar mais seria estragar o filme. Ou não!

Os recursos paradoxais emulados neste texto estão longe de serem gratuitos: são minuciosamente requeridos para uma adequada apreciação do filme, que exige uma partilha sentimental entre espectador e personagens. O plural neste último sujeito confirma-se numa esplêndida mudança de perspectiva, em dado momento do enredo: desde o início do filme, a primeira pessoa é concedida ao olhar da personagem feminina, cujo prisma ocular é aquele com o qual o filme ostensivamente confunde-se. Mas ele também confunde-nos de propósito, e amalgama diversas solidões e temores no roteiro, como é característico das tramas intricadas levadas a cabo pelo diretor. Somos obrigados a completar as lacunas enredísticas com as nossas dores íntimas, sem que seja necessário recorrer à sinopse original do romance, visto que a adaptação é sobremaneira pessoal. É um filme de Charlie Kaufman, sem dúvida!

Num dos momentos mais geniais da película, em razão de sua excentricidade acachapante, o casal pára numa sorveteria durante uma tempestade de neve: eles pedem duas enormes porções de sorvete, que obviamente não serão consumidas, por causa do frio em si e devido ao sobejo de edulcorantes. Como faço para receber a tua ajuda? O pretexto para desfazer-se das embalagens desencadeia a reviravolta mais inesperada do filme, quando a versão animada da alma de um porco (que sabemos ter sido consumido por larvas de moscas, num relato de Jake) surge diante de um homem nu, andando desolado pelos corredores de um ambiente multiplamente quadriculado. A essa altura do relato, ainda convém suplicarmos a audiência a este filme? Pelo sim, pelo não: vejam-no!

Assistimos a uma obra que versa sobre a depressão? Ainda que não exclusivamente, sim! Este roteiro chama a atenção paras as mazelas afetivas que levam pessoas desesperadas a cometerem o suicídio? Com certeza! O título em primeira pessoa emula, de maneira original, a quebra de paradigmas confessionais, em que autor e narrativa confundem-se tematicamente? Definitivamente. Não por acaso, o que está lamuriado nas entrelinhas desse texto diz respeito a mim, personagem e escritor deste arremedo de resenha. Como diz a protagonista, “esse é o objetivo da poesia: a universalidade no específico”. Não é vergonha clamar por socorro: faço-o agora!

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