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De quando um filme português salva a vida do espectador

De quando um filme português salva a vida do espectador

Premiado como Melhor Filme no Festival de Cinema de Locarno, “Vitalina Varela” (2019, de Pedro Costa) figurará nas listas de Melhores do Ano de inúmeros cinéfilos ao redor do mundo. Para além de suas obsedantes características cinematográficas, esta obra-prima surpreende-nos também por seu potencial litúrgico, por sua ode epifânico-proletária às virtudes insignes do Amor. É um filme que dói, sendo perpassado por um luto perene, mas que também salva vidas, que oferta-nos uma esperança não-expectante a partir da garantia de continuidade, metonimizada pela coesão extrema da filmografia costiana…

Realizado como o píncaro de um percurso antecipado noutros filmes, cujos personagens retornam em mais de uma situação, “Vitalina Varela” apresenta-nos à personagem-título de maneira aflitivamente solene: desce de um avião descalça e liquefazendo-se (lágrimas, urina e sangue misturam-se em seu tormento de viúva), a fim de instalar-se na residência precária onde seu marido falecera. Ela provém de Cabo Verde, tal como ele. Falando sozinha, direciona uma reclamação ao marido falecido: “tua morte não apaga todo o mal que fizeste”. Reencontra um padre (Ventura), também proveniente de seu País natal, que padece do Mal de Parkinson e lamenta que a sua igreja esteja vazia. Sequer lembra os versos do “Pai Nosso”. Atormenta-se pelo remorso decorrente de erros da juventude. A dor aproxima os poucos personagens do filme.

Interpretado por uma atriz homônima, merecidamente laureada no mesmo Festival de Locarno, “Vitalina Varela” é filmado de maneira ostensivamente frontal, com pouca iluminação. Apresentando os traços característicos da obra do cineasta Pedro Costa, os primeiros minutos do filme centram-se numa espécie de funeral simbólico do esposo da protagonista, Joaquim. A casa é varrida, os lençóis sujos de sangue são retirados, as fotos de amantes são queimadas. Vitalina não compreende o motivo de seu marido ter fugido sem se despedir: “onde morávamos, tínhamos pouco, mas o que tínhamos era nosso”. Chateia-se ao perceber as más condições do local em que ele instalar-se. Bate a cabeça nas vigas baixas o tempo inteiro. Chora no banho. Veste-se de preto. Relembra a juventude, quando lia sobre a descoberta do amor por parte da Rainha Elizabeth I, da Inglaterra, algo considerado “menos importante” que a ascensão de Adolf Hitler, numa notícia de jornal. Quem sabe é quem sente, diz um célebre ditado popular…

Extremamente autoral em cada minúcia, “Vitalina Varela” surge como a demonstração cuidadosa do estilo sumamente autoral do lisboeta Pedro Costa, um dos cineastas mais elogiados da década por seus méritos intrinsecamente cinefílicos. Mas há algo que transcende a própria magnificência da Sétima Arte neste filme: além de ser uma poderosa declaração de amor ao próximo e de requisitar uma função ressignificada da religião na contemporaneidade, “Vitalina Varela”, dando imediata continuidade aos filmes prévios do diretor, é um manifesto em prol dos trabalhadores pobres (e imigrantes). Exercendo as funções de pedreiros, eletricistas e atividades similares, os personagens do filme passam a maior parte do tempo ausentes de suas residências, o que desencadeia mortes por abandono. Somente Vitalina fica numa casa que não é sua, tentando higienizar o que está perpetuamente estragado. O retorno à sua cidade de origem é imperativo. E, enquanto consolo, o filme obedece a uma geografia e estrutura temporal muito particular, interna. O Sol brilha numa seqüência final de reconstrução, à guisa de ‘flashback’ e ‘flashforward’, simultaneamente. É um filme que salva vidas, convém repetir!

Antes que possamos identificar os personagens e situações do filme, acompanhamos a deambulação de vários homens por becos escuros e insuficientemente limpos. Espectadores casuais interrogar-se-ão acerca do aspecto físico destas pessoas: são loucos? Mortos-vivos? As respostas afirmativas não se excluem, mas somam-se à denúncia dramatúrgica genialmente levada a cabo pelo filme, que suplica pela reumanização de todos os envolvidos na produção, incluindo os seus audientes. Em determinados momentos, a protagonista parece esquecer os nomes de quem está ao seu redor. Convence um vizinho a fazer as pazes com a sua esposa, reiterando-lhe que “o amor é tão importante”… Não deu tempo: ela falece por causa de um incêndio causado por uma vela que queima um colchão, enquanto o marido está coletando artefatos de ferro, no afã por sobreviver. Caberá ao padre, ao lado de Vitalina, num cemitério, interrogar onde Deus encontrar-se-ia, numa conjuntura de abandono intenso como a que caracteriza o capitalismo atual. A resposta está na prática, naquilo que é feito após o contato com o filme. “Vitalina Varela” é o testamento de uma década, o pedido de socorro de um mundo sufocado pela amargura financiada por quem beneficia-se das crises hodiernas. Amar é um ato político, não esqueçamos o credo freireano!

Somando-se aos nomes de gênios lusitanos como os falecidos João César Monteiro e Manoel de Oliveira e os ainda ativos Miguel Gomes, João Pedro Rodrigues e Rita Azevedo Gomes, Pedro Costa instaura-se como um dos cineastas mais autorais e qualitativos de todos os tempos, erigindo uma obra mui singular, cujo potencial reativo é absolutamente transformador. Ansiemos por seus próximos projetos e, por ora, aplaudamos de pé a suprema obra de arte e amor que atende pelo nome de “Vitalina Varela”. Magnífico ponto culminante do Cinema em 2019!

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