Na edição 821 da revista Cahiers du Cinèma, publicada em junho de 2025, a matéria de capa fala sobre o que se segue a uma “era de ouro” das séries televisivas, em que a atomização surge como consequência de uma nova economia proposta pelas plataformas de ‘streaming’, que “privilegiam a profusão em detrimento da qualidade de uma obra emblemática, diluindo a qualidade numa maré cuja corrente algorítmica varre qualquer forma de julgamento”. Contando com entrevistas a roteiristas de séries autorais, como David Simon, Amy Sherman-Palladino e Mike Flanagan, esta edição também analisa a própria relação dos cinéfilos com produtos televisivos de caráter cinematográfico, sobretudo a terceira temporada de “Twin Peaks”, criada por David Lynch e Mark Frost, que foi eleita como o melhor lançamento de 2017. Vale lembrar que a primeira temporada da série “24 Horas”, criada por Joel Surnow e Robert Cochran, esteve listada entre os melhores filmes de 2002, pela mesma revista. É um tema tão recorrente quanto relevante para os leitores, portanto.
O tema desta edição instigou os espectadores a procurarem, nos artigos, menções a seus programas favoritos e, como tal, nos leva a elogiar os trabalhos escritos por Terence Winter, para a HBO, sobretudo a extraordinária série policial “Boardwalk Empire — O Império do Contrabando”, cuja primeira temporada, lançada em 2010, teve a contribuição de Martin Scorsese enquanto produtor executivo e diretor do episódio inicial. Isto chama a atenção para outro aspecto abordado pela revista, que é a contribuição de cineastas em relação a narrativas seriadas, o que ocorreu no passado com Alfred Hitchcock, Maurice Pialat e Rainer Werner Fassbinder, para ficar apenas em três nomes célebres, e, no presente, possui Tim Burton, Olivier Assayas, Marco Bellocchio, Luca Guadagnino e Pablo Larraín como alguns dos vários realizadores que converteram os seus nomes em grifes emprestadas a produtos televisivos.
Voltando a “Boardwalk Empire — O Império do Contrabando”: situada no início da década de 1920, esta série teve cinco temporadas e é protagonizada por Steve Buscemi, que interpreta Nucky Thompson, tesoureiro corrupto de Atlantic City, que arregimenta a sua riqueza através do tráfico de bebidas alcoólicas, durante o período da Lei Seca. Ele apaixona-se por Margaret Schroeder (Kelly Macdonald), que apanha constantemente do marido, o que a leva a aceitar o convite de Nucky para morar consigo, depois que este ordena o assassinato de seu rival amoroso. Nucky é constantemente acompanhado por Jimmy Darmondy (Michael Pitt), um veterano de guerra que, em determinado momento, decide tornar-se, ele próprio, um chefe do crime organizado, enquanto lida com as rusgas entre a sua esposa infeliz, Angela (Aleksa Palladino), e sua mãe controladora, Gillian (Gretchen Mol), além de contar com o apoio do taciturno Richard Harrow (Jack Huston), um ex-soldado que teve o rosto deformado na I Guerra Mundial. Outros personagens importantes, na vasta gama de figuras desta série, são: o xerife Eli Thompson (Shea Whigham), também corrupto e irmão de Nucky; o mafioso e líder comunitário Chalky White (Michael Kenneth Williams), peça-chave nas negociações de greve envolvendo os trabalhadores afro-americanos; e o investigador Nelson Van Alden (Michael Shannon), fanático religioso que, a despeito disso, passa a cometer variegados crimes.
Condizente com o estilo mui particular da HBO de conduzir as suas narrativas — “não é TV, é HBO”, cita a matéria da revista supracitada, ao relembrar um famoso jargão desta emissora/produtora —, a série em pauta avança de maneira bastante lenta, com rigorosa pesquisa histórica na reconstituição dos eventos e situações, de modo que a audiência aos episódios distingue-se daquilo que a Netflix costuma publicizar, estimulando as “maratonas”. A diferença elementar: as séries exibidas na HBO impressionam por aquilo que apresentam, em cada episódio, enquanto as produções da Netflix escoram-se em ganchos tramáticos que nem sempre sustentam o interesse espectatorial, quando desvelados. Por conta disso, as primeiras são marcantes e memoráveis, através das décadas, enquanto as últimas ficam em evidência por algumas semanas — graças ao agendamento de divulgadores eventualmente contratados —, mas tendem a ser esquecidas e/ou mal avaliadas pelos críticos.
Se a primeira temporada de “Boardwalk Empire — O Império do Contrabando” já era excelente, ao apresentar todos estes personagens, sobremaneira complexos em suas falhas morais e carências emocionais, a segunda, lançada em 2011, surpreende por ser ainda melhor, no que tange ao prolongamento dos eventos: Nucky Thompson é juridicamente investigado por seus crimes, é traído por alguns de seus parceiros (entre eles, o irmão Eli, o que rende cenas antológicas de brigas entre eles) e lida com as dúvidas de Margaret quanto ao relacionamento “pecaminoso”, depois que ela amplifica a sua culpa católica, quando a filha contrai poliomielite. O pai de Jimmy, o comodoro Louis Kaestner (magistralmente vivido por Dabney Coleman), desempenha importantes (e malevolentes) funções nesta temporada, ao acirrar a competitividade entre o seu protegido filial e o antigo padrinho deste. No desfecho, um acerto de contas amargo, enquanto corolário de uma escalada acachapante de violência, que, paradoxalmente, transforma Nucky Thompson num anti-herói deveras carismático, por quem chegamos a torcer, no limiar de mais um Ano-Novo (que dá início à terceira temporada, lançada em 2012). Steve Buscemi merecia inúmeros prêmios por este trabalho, com destaque para o fabuloso diálogo, no derradeiro episódio, em que, ao ter o seu cristianismo questionado, ele dispara: “se Deus existisse, Ele teria me concedido um rosto tão feio?”. Quem ainda não viu esta telessérie, precisa descobri-la: merece figurar entre as melhores de todos os tempos!
Wesley Pereira de Castro.
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