Com esse texto aqui, concluímos as bases que observamos nos dois maiores jornais brasileiros –Folha de S.Paulo e O Globo – e que ajudam a construir a invisibilização da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa no Brasil, pelos menos, nos primeiros 20 anos da CPLP. Antes desse artigo, tratamos de ausência, da indiferença e da diferença. Agora, partimos para os nítidos indícios de rejeição.
Em certa medida, a atitude de indiferença brasileira em relação à CPLP assemelha-se às ações de diferença e tem-se ainda uma clara perspectiva da rejeição na indiferença. Tomamos essa rejeição como uma ação proativa diante do que seria um incômodo; é uma ação expressa de reação que nos faz revelar um sujeito – o Brasil – nitidamente parcial, ultrapassando-se a falsa ideia de uma indiferença passiva.
Um dos registros nos jornais que mais revelam esse modo de rejeição do Brasil diante do incômodo de algum tipo de vinculação com a comunidade lusófona é o que traz a notícia sobre o primeiro ano da CPLP. Para lembrar a data do primeiro aniversário dessa entidade, o jornal O Globo, em 17 de julho de 1997, publicou uma notícia com o seguinte título: “Países de língua portuguesa contra as drogas”. É um pequeno registro que estava na página 11, junto com anúncios publicitários e duas pequenas notas sobre crimes, violência: “Sem terra saqueiam” e “Pedida prisão de piloto”. Como lembrar do primeiro aniversário de criação da comunidade lusófona junto com notícias de violência, dentro da editoria que trata de criminalidade.
Esse registro em O Globo sobre o primeiro ano da CPLP era uma antecipação de uma reunião de embaixadores dos países de língua portuguesa que ocorreria em Salvador/Bahia naquela data. No texto do jornal, a futura decisão do encontro foi antecipada e ressaltada em O Globo: o combate às drogas. Na parte principal da notícia não existe nenhum tipo de balanço sobre o primeiro ano da CPLP, mas ele pode ser visto em um box, ao lado, a partir da entrevista com José Aparecido, ex-embaixador do Brasil em Portugal, e um dos idealizadores dessa entidade.
Ao ser preterido como secretário executivo da CPLP pelo governo brasileiro, Aparecido faz críticas pontuais ao pouco interesse do Brasil com a comunidade nesse primeiro ano. Entretanto, é no corpo principal da notícia que a rejeição à ideia de comunidade está claramente posta, ao ancorar seus membros africanos com as drogas.
O texto da notícia inicia com uma afirmação categórica: “O Brasil e os demais países de língua portuguesa vão combater o narcotráfico. Os termos do acordo serão discutidos hoje, no primeiro aniversário da CPLP” (O Globo, 17/07/1997, p. 11). Em seguida, o jornal identifica onde está o problema a ser combatido: as drogas que saem dos países lusófonos da África, passa pelo Brasil até chegar aos Estados Unidos e à Europa.
A criminalização das nações africanas sugere que o Brasil desenvolva uma imediata rejeição a essa comunidade que nos envolve em razão de que seríamos, por conta delas, uma rota de tráfico. Isso implica reforçar a ideia de “repelente” visto no avião do governo brasileiro, no permanente combate ao Outro africano, no uso de “terceiro mundo”, criminoso, indesejado, essa diferença que contamina a imagem do Brasil e a coloca distante do Outro desejado, europeu, estadunidense, o do “primeiro mundo”.
Essa notícia que lembrou o primeiro ano da CPLP e nossa relação com essa comunidade, que para o jornal deve ser de pronta rejeição, é basilar no regime de visibilização para os registros seguintes sobre essa comunidade.
Lembremos que em 2002, o mesmo O Globo (30/07) tratou a ideia de uma possível “cidadania lusófona”, em que se discutia a mobilidade dos povos dessa comunidade como um caso de polícia. Essa publicação estava na editoria de crimes e o motivo era a possibilidade de “livre circulação de africanos no Brasil”. Essa temática criminal também está em O Globo (13/01/2008) quando o jornal fez longa reportagem sobre o “Trampolim africano para a droga na Europa”. O problema eram Guiné-Bissau (tratado pelo jornal como um “Narco-Estado”) e Cabo Verde, postos em visibilização e lembrados como membros da comunidade lusófona, da qual o Brasil faz parte.
Existe esse modo construtivo para rigorosa rejeição em várias notícias sobre os conflitos que envolveram os países dessa comunidade, o tráfico de drogas, as ditaduras, as doenças. Em duas décadas, nos dois maiores jornais brasileiros, há uma espécie de agenciamento de temas e personagens para configurar um quadro de impossibilidade de associação do Brasil com a comunidade lusófona. No Governo Lula, percebemos o quanto essa mirada de rejeição foi proposta e amplificada. Mesmo depois dele ter deixado a Presidência, essas relações entre Lula, a CPLP, África, corrupção e ditadura se mantiveram. Veja o exemplo:
Em 2014, já no Governo Dilma, o jornal Folha de S.Paulo traz um único registro em que tratou sobre o ingresso da Guiné Equatorial na CPLP. A única fotografia utilizada nessa notícia foi resgatada pelo jornal do ano de 2008, onde apareciam Lula e o “ditador” daquele país se cumprimentando. A presidenta Dilma não aparece nem no texto da notícia. O jornal destaca o apoio de Lula para que a Guiné Equatorial entrasse no “bloco” dos lusófonos, “mesmo sob o protesto de entidade de direitos humanos”. A Folha despeja sua crítica no filho do presidente Mbasogo, “acusado pelos Judiciários dos Estados Unidos e da França de corrupção e de lavagem de dinheiro”.
Temos, assim, mesmo diante de raras notícias em duas décadas sobre a CPLP em O Globo e na Folha de S.Paulo, a construção de um apagamento que não se deu apenas pela ausência reiterada, mas pela presença de rastros constantes que denunciam uma comunidade lusófona que o Brasil precisa lutar contra, que vai rejeitar. Podemos falar da fabricação de uma imagem de imunidade que os brasileiros podem desenvolver em relação aos demais povos das lusofonias, uma condição immunis que tem por base uma cultura de colonialidade muito viva entre nós. Sobre esse último aspecto, vamos tratar nos próximos dois textos.
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