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“Basta colocar a panela em cima do fogo e comer o que sair, uai!” – ou de como é urgente contextualizar o que testemunhamos…

“Basta colocar a panela em cima do fogo e comer o que sair, uai!” – ou de como é urgente contextualizar o que testemunhamos…

Não obstante a cobertura jornalística envolvendo a invasão da Rússia à Ucrânia ser assaz relevante, abundaram na Internet os comentários chistosos ou paródicos sobre este conflito bélico, bem como o oportunismo de alguns fundamentalistas religiosos, que aproveitaram a tragicidade deste evento histórico contemporâneo para confirmar que aquilo que fôra previsto no livro bíblico do “Apocalipse” está se concretizando. Manchetes mencionando a possibilidade de uma III Guerra Mundial tornaram-se freqüentes em veículos que associam noticiabilidade a espetáculos. E, assim, infortúnios e alegrias foram provisoriamente obliterados…

Se, hoje em dia, os ‘reality shows’ e as mídias sociais são defendidos como instrumentos necessários (e até desejados) de alienação por seus próprios consumidores, noutros tempos, os musicais da era de ouro hollywoodiana eram criticados por serem intencionalmente evasivos: por mais qualitativos que eles fossem – e merecedores de múltiplas láureas, por conta disso –, volta e meia algum crítico reclamava que estas superproduções cinematográficas distanciavam o público dos problemas corriqueiros. Em termos diacrônicos, muitos justificam a partir disso o surgimento dos Cinemas Novos internacionais, depois da II Guerra Mundial. Procede. Mas o maniqueísmo argumentativo desse tipo de relação é preocupante.

Do mesmo modo que não se pode “escolher lados” num confronto internacional, como se estivéssemos assistindo a uma partida de futebol, não se deve rejeitar os clássicos estadunidenses – por mais ostensivamente problemáticos que eles sejam ou pareçam – em razão de discordâncias político-ideológicas: em suas entrelinhas, estes filmes dizem muito, ajudam-nos a enfrentar as tribulações cujos afãs publicitários induzem-nos a esquecer…

Num excelente livro, escrito em colaboração com a sua esposa Kristin Thompson, o teórico fílmico norte-americano David Bordwell analisa várias obras hollywoodianas através de um escopo aleatório, a fim de demonstrar algumas recorrências narrativas moldadas pelas convenções de gênero e pelas determinações do ‘studio system’ e do ‘star system’. E é assim que chegamos ao musical “As Garçonetes de Harvey” (1946, de George Sidney – rebatizado como “A Batalha do Pó de Arroz”, em Portugal), que – mesmo visto por acaso, numa sessão dominical de algum canal de TV – traz consigo lições valiosas sobre a lida cotidiana…

Baseado no empreendimento de um personagem real [Frederick Henry Harvey (1835-1901), que desenvolveu a primeira cadeia de restaurantes dos Estados Unidos da América], o roteiro deste filme é situado no final do século XIX e a sua protagonista é Susan Bradley (Judy Garland), uma garota de Ohio que viaja para a cidade de Sandrock, no Arizona, a fim de casar-se com um homem com quem correspondeu-se graças aos anúncios classificados de pessoas solitárias. Aquisitivamente desfavorecida, Susan chega a esconder-se durante as suas refeições, pois não tem sequer o que compartilhar com as crianças pobres que lhe pedem comida no trem…

Ao chegar em seu destino, após um trajeto ferroviário de mais de mil quilômetros, Susan descobre que seu pretendente marital, H. H. Hartsey (Chill Wills), é muito mais velho que ela e consciente de sua falta de charme ou virtudes. Este fazendeiro bronco – que pronuncia a frase que intitula este artigo – logo confessa que não escreveu as cartas que fizeram com que ela se apaixonasse, instigando-a a conhecer Ned Trent (John Hodiak), um jogador contumaz e boêmio inveterado que administra um lucrativo ‘saloon’, no qual a bela Em (Angela Lansbury) coordena um grupo de dançarinas que, tudo indica, também prestam-se a atividades sexuais remuneradas. É óbvio que Susan apaixonar-se-á por Ned, que é o grande amor de Em, malgrado ela ser recorrentemente ignorada!

No trem onde estava, Susan conhece as garçonetes do título e une-se a elas na inauguração do restaurante pioneiro, o que engendra uma intensa competição entre os estabelecimentos comerciais. A baliza elementar de Fred Harvey na disseminação interestadual de seus préstimos empresariais era a oferta de “um serviço honesto, excelente, higiênico, limpo, rápido e alegre em todos os momentos”. Como trata-se de uma ambientação de faroeste, há o desenvolvimento de uma oposição entre a moralidade concernente às premissas do restaurante desenvolvimentista e a teimosia ameaçadora dos fora-da-lei locais. O problema é que tudo mostrado sob o prisma da comicidade, sendo que há muitas questões sexistas e raciais secundarizadas: as mulheres passam a brigar entre si e vemos alguns negros e índios em funções empregatícias pouco valorizadas. A conformação nacional é questão direcionada apenas aos brancos, nesse tipo de filme!

Não é difícil imaginar como o enredo termina, apenas lendo a sua sinopse, mas “As Garçonetes de Harvey” seduz-nos justamente naquilo que é valorizado por suas convenções de gênero: as canções. Tanto que a antológica “On the Atchison, Topeka and the Santa Fe” recebeu um merecido Oscar, e os números de dança são ótimos e exuberantes, chamando a atenção por causa dos figurinos coloridos das atrizes. Uma delas (Virginia O’Brien) protagoniza uma seqüência magistral, quando, ao som de “The Wild, Wild West”, ensina um assustado ferreiro (Ray Bolger) a pregar ferraduras em cavalos. Há uma provocação feminista bem-vinda, portanto.

Reiterando o que foi dito acima, é importante assistir a estes filmes de maneira crítica, sem abandonar a entrega à diversão, por conta disso. Em suas simplificações românticas e capitalistas, este musical demonstra-se também exortativo, no que tange à definição de suas fortes personagens femininas, num período histórico em que as mulheres eram sobremaneira objetificadas. Fica evidente, nos diálogos, que as garçonetes submeteram-se a tantas humilhações porque passavam fome em suas cidades de origem – e foram muito bem-sucedidas na expansão de seus negócios, ainda que os méritos administrativos sejam direcionados unicamente a Fred Harvey, homenageado na epígrafe do filme. O reconhecimento da efetiva participação dos agentes históricos é algo que requer muita paciência e pesquisa. E, se esse texto parece confuso na exposição de seus argumentos, é porque seu autor o redigiu poucas horas após ser informado sobre o suicídio de um amigo. A vida real precisa continuar após a sessão…

Wesley Pereira de Castro.

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