Nos oito primeiros meses de 2019, o Brasil foi comumente noticiado em publicações internacionais. Na grande maioria das vezes, por causa das asneiras proferidas pelo presidente Jair Bolsonaro e seus asseclas malévolos. Uma exceção benfazeja ocorreu na edição de Setembro da prestigiada revista francesa Cahiers du Cinéma: na capa, uma cena do filme “Bacurau” (2019, de Kleber Mendonça Filho & Juliano Dornelles) e uma legenda que alude ao tom de forte enfrentamento anti-bolsonarista no discurso fílmico comum a várias produções brasileiras recentes. Assistir a este filme tornou-se mais que uma obrigação cinéfila: é um dever cívico!
Como é recorrente nos longas-metragens ficcionais do recifense Kleber Mendonça Filho, o roteiro desenvolve-se paradigmaticamente, ainda que respeitando certa linearidade e/ou teleologia. A trama é simples em sua apresentação, ao contrário do desenvolvimento minucioso de uma pletora orgânica de personagens. No início, falece uma senhora bastante idosa, que exercia uma importante função de liderança na cidade fictícia que intitula o filme. Em seu funeral, há diversos reencontros, além da constatação de que algo errado circunda a cidade: ‘drones’ com aparência de discos voadores começam a perseguir os moradores e várias pessoas surgem violentamente assassinadas. “Estamos sendo atacados!”, constata alguém, na reviravolta que impulsiona o violento desfecho do filme. E é neste interstício que precisamos prestar um pouco mais de atenção…
Sem haver necessariamente um protagonista, tem-se na figura da falecida Carmelita (interpretada fantasmática e sublimemente por Lia de Itamaracá) um elemento catalisador de afetos e reações. Sua neta Teresa (Bárbara Colen) regressa à cidade, depois de muito tempo ausente, e traz consigo vacinas oportunas contra doenças que ameaçam infectar novamente o país. Firme e decidida, ela reata prontamente o enlace sexual com o pistoleiro Acácio (Thomás Aquino), conhecido publicamente como Pacote e respeitado como celebridade por conta das filmagens de execuções balísticas captadas pelas câmeras de estabelecimentos privados. Talvez este seja o núcleo subtramático mais aproveitado no filme…
O filho de Carmelita, Plínio (Wilson Rabelo) é o professor local, e constata com alarde que a sua cidade foi aparentemente riscada dos mapas eletrônicos que consulta com seus alunos pueris. Como a trama do filme passa-se “daqui a alguns anos”, há um flerte sutil com a ficção científica, de modo que aparatos tecnológicos são comuns em meio à exigüidade de recursos da cidade agreste em pauta. Um prefeito mal-intencionado (Thardelly Silva) tenta defender a sua reeleição a partir da distribuição de alimentos vencidos e de livros rasgados. A médica local, Domingas (Sônia Braga, fulminante), melhor amiga da falecida Carmelita, confronta-o de maneira implacável: denuncia o despejo indiscriminado de antidepressivos na cidade, mas não impede que, se quiser ingeri-los, assim o faça. Aos poucos, todos estes nucléolos narrativos convergem para o grande enfrentamento do filme, desencadeado contra a figura sádica incorporada pelo alemão naturalizado estadunidense Michael (Udo Kier). E, para tanto, necessita-se das estratégias bélicas do misto de pária e herói local Lunga (Silvero Pereira), que exorta toda a cidade a pegar em armas, a fim de defender-se. Conseguirão? O farão do modo mais adequado? Julgamentos morais são requisitados em instantes calamitosos? Perguntaremo-nos por muito tempo, após a sessão…
Em diversas situações, ficará evidente o paralelismo entre a invasão armamentista forânea que ameaça a paz de Bacurau e as improbidades ideológicas do (des)governo brasileiro atual, de modo que o filme está sendo recebido com muito entusiasmo pela esquerda política, visto que apresenta uma maneira catártica de lidar com a vilania de quem se compraz em matar. Mas contradições inequívocas deste paroxismo resolutivo são também postas em xeque pelo roteiro, pois, de algum modo, Lunga corresponde precisamente a uma corruptela “justiceira” do sobejo de violência que soa tão prejudicial aos bacurauenses. Aliás, convém repetir textualmente aqui: “quem nasce em Bacurau é gente!”.
Antes de Lunga ser exaltado enquanto reencarnação contemporânea de um “cangaceiro do bem” – não obstante sentir um prazer ambíguo em decapitar seus inimigos – vários resistentes são apresentados entre os moradores da cidade: na entrada da mesma, por exemplo, há uma vigilante transexual que comunica generalizadamente qualquer irregularidade suspeita nas cercanias do local. Numa das seqüências mais importantes do filme, um casal de motoqueiros (Karine Teles e Antonio Saboia) adentra abruptamente a cidade e é recebido com bravata pelo violeiro Carranca (Rodger Rogério). Momentos depois, eles atiram à queima-roupa em dois amigos que descobrem uma chacina numa fazenda próxima. A posteriori, são questionados por Michael acerca do fato considerado traiçoeiro de terem assassinado seus próprios compatriotas. Quando os ataques fatais não atendem aos seus propósitos, o implacável vilão apenas lamenta: “quanta violência…”. E é aqui que o enredo demonstra-se mais poderosamente crítico!
Tendo contribuído como diretor de arte em filmes anteriores de Kleber Mendonça Filho, Juliano Dornelles merece elogios pelo trabalho mui cuidadoso de elaboração dos ambientes locais, desde o prostíbulo itinerante até a estufa psicotrópica do velho naturista Damiano (Carlos Francisco). O uso da nudez no filme surge de maneira efetivamente combativa e aderente. Mas o que mais impressiona-nos em “Bacurau” é como o co-diretor principal lida com as hipertrofias de seu estilo maneirista, entendendo-se o termo no sentido atribuído pelo crítico Luiz Carlos Oliveira Júnior: “um vasto conhecimento das formas preexistentes e um desejo quase maníaco de retrabalhar o material plástico-figurativo das imagens”. O controle ambiental exercido pela ‘mise-en-scène’ de Kleber Mendonça Filho é acachapante em seus recursos expressionistas, servindo-se de pelo menos três canções extraordinárias em momentos icônicos de puro júbilo cinematográfico: a execução de “Não Identificado” (composta por Caetano Veloso e interpretada por Gal Costa) na abertura extraplanetária, para deixar bem claro que a Terra não é plana; a reiteração do “Requiém para Matraga”, de Gerado Vandré, que apregoa que “se alguém tem que morrer/ que seja para melhorar”; e a inaudita sobreposição do hino eletrônico “Night”, de John Carpenter, a uma brincadeira noturna de capoeira. Genial!
A apreciação adjetiva supracitada ecoa em diversos momentos de “Bacurau”, mais por seus artifícios cinematográficos que pela exequibilidade de seu discurso político combatente, ainda que uns sejam estritamente relacionados ao outro. Toda a filmografia de Kleber Mendonça Filho é marcada por uma acurada percepção das mazelas que permitem a inoculação do mal – neste caso mais recente, associada a uma exacerbação direitista invasora – mas, em “Bacurau”, alguns paradoxos fundamentais são expostos de forma intrigante: afinal, Lunga insurge-se como um reflexo diametralmente correlacionado à pulsão mercenária de Michael, quase como se um tivesse sido treinado pelo outro (o que, convenhamos, ocorreu via audiência aos filmes hollywoodianos).
Dedutivamente, o clímax vingador em “Bacurau” soa problemático no estímulo comemorativo que desencadeia nas platéias, posto que Lunga sente um inequívoco prazer em matar, tanto quanto os atiradores recrutados por Michael, que disparam em pessoas como se estivessem num mero jogo eletrônico. Ou seja, a violência extrema impede a consecução imediata da destruição citadina, mas não a elimina em essência, dado que há um premente envenenamento identitário via aculturação tecnológica. Mas este é apenas um dos variegados pontos de discussão que este filmaço instiga: assistir a “Bacurau” é realmente um dever cívico. E, felizmente, a despeito da censura bolsonarista crescente em relação aos produtos culturais, ainda é um direito básico para os brasileiros.