Lucas tem 22 anos de idade e mora no Brasil. Ao ser aprovado numa faculdade particular de Direito, graças a um programa de apoio governamental, precisou encontrar um emprego, a fim de pagar o percentual das mensalidades não amparado pela bolsa parcial de estudos a que teve acesso. Após 37 dias de treinamento, ocupou-se como atendente de telemarketing. Em sua Carteira de Trabalho, consta outro registro profissional: representante de atendimento. Questões sindicais, que ele não compreendia direito. Bastante espirituoso, fazia o possível para divertir-se no trabalho. Afinal, eram apenas seis horas e vinte minutos de jornada diária. Mal sabia ele o que o aguardava: nem bem completou dois anos de atividade, precisou ser afastado de seu emprego pelo INSS – Instituto Nacional do Seguro Social.
Depressão crônica. Chorava o dia inteiro, perdeu peso, gastou muito dinheiro em consultas psiquiátricas e remédios. Voltou ao trabalho depois de quase um ano sob tratamento. Mas foi proibido de atender, ao retornar. Sua demissão era inevitável, o que, para ele, foi ótimo: “é como tirasse um peso de mim. Depois que fui demitido, consegui me sentir muito melhor psicologicamente!”. Hoje, ele tenta repor o tempo perdido de estudo, por conta de sua mazela empregatícia…
Rosália, por sua vez, tem 46 anos de idade. Mais velha que a grande maioria de seus colegas de profissão, ela acostumou-se rápido ao emprego. Possuía experiência prévia com atendimentos, acreditava que a curta jornada de trabalho não a prejudicaria. Realmente, precisa do emprego. Tanto que, antes de ser entrevistada para esta matéria, requereu que não fosse exposta, que seu nome fosse alterado, que sua fotografia não aparecesse: “ainda estou trabalhando, e preciso dele. Estou com o marido desempregado e [lá na empresa], tudo é motivo de demissão por Justa Causa”. Ela ingere vários comprimidos por dia, para que possa suportar as seis horas e vinte minutos diários. Consulta quinzenalmente um psiquiatra, mas, mesmo estando debilitada, reluta em apresentar atestados médicos. Teme ser afastada e ficar sem receber seu salário mensal. Infelizmente, não é um caso isolado…
Ambas as situações apresentadas são representativas de um quadro bastante comum no ramo do atendimento em telemarketing: o adoecimento crônico, por motivos físicos ou psicológicos, em razão das perseguições patronais ou de deficiências ambientais propriamente ditas. Existe uma Norma Regulamentadora do Ministério do Trabalho – o Anexo II da NR 17 – que direciona-se especificamente aos atendentes de telemarketing, visando à manutenção das condições ergonômicas desta profissão. Entretanto, nem sempre estas recomendações são atendidas.
Dentre as recomendações, além de sugestões de mobiliário e condições de higienização do material ofertado aos trabalhadores, encontramos a seguinte determinação ambiental: “os locais de trabalho devem ser dotados de condições acústicas adequadas à comunicação telefônica, adotando-se medidas tais como o arranjo físico geral e dos postos de trabalho, pisos e paredes, e isolamento acústico do ruído externo”. Na prática, isso não é atendido. O técnico em Segurança do Trabalho Timóteo Siqueira, demitido após três anos de observação numa destas empresas de telemarketing, comentou que percebeu muitas irregularidades no tempo em que exerceu a sua função: “postura inadequada, falta de higienização do kit-conforto (tubo e espuma), usados no ‘headset’, não faziam regulagem do mobiliário da PA (posto de atendimento), e as doenças que alguns adquiriram devido esses fatores foram otite, lombalgia e LER – Lesão por Esforço Repetitivo”.
Segundo ele, “o maior desafio na atividade de telemarketing é conscientizar os operadores em aplicar as normas de Saúde e Segurança do Trabalho. Isso acontece por que os próprios gestores não estão comprometidos com a segurança e não cobra dos seus subordinados a aplicação das normas”. Segundo ele, “infelizmente, a segurança do trabalho no telemarketing é banalizada”. De fato, ao entrevistar-se outros atendentes de telemarketing, todos enfatizaram que muitos dos problemas de adoecimento advêm dos maus tratos decorrentes de seus superiores hierárquicos.
Uma dessas entrevistadas, de nome Amanda, explicou: “o maior problema da profissão começa pelo despreparo dos profissionais em cargos de chefia e supervisão. A curta jornada torna-se uma eternidade quando o operador precisa, além de exercer sua função, lidar com a cobrança excessiva de resultados e com a falta de profissionalismo dos supervisores. Soma-se a isso o assédio moral e sexual frequente. Todos esses fatos levam a um cansaço físico e mental que não permite ao funcionário, mesmo fora do trabalho, dedicar-se com afinco a outras áreas de sua vida, como família e estudos”.
Segundo estatísticas, perda de audição, depressão e deficiências ósseas decorrentes de problemas posturais são os mais freqüentes nesta profissão. Existem vários estudos sobre a profissão, visto que a mesma é a principal demonstração do que se convencionou chamar de precariado, neologismo que advém da expressão “proletarizado precarizado”. No Brasil, os principais pesquisadores sobre esta área da Sociologia do Trabalho são Giovanni Alves e Ruy Braga, sendo definida como “a camada média do proletariado urbano constituída por jovens-adultos altamente escolarizados com inserção precária nas relações de trabalho e vida social”. Ou seja, o não aproveitamento das habilidades educacionais dos trabalhadores destaca-se enquanto elemento de exploração e desprestígio.
Geralmente, a função de atendente de telemarketing é exercida por estudantes recém-saídos do Ensino Médio, que não dispõem de muitas opções de profissionalização até que ingressem, a contento, no curso universitário desejado. O efeito negativo é que, ao optarem por um emprego que afeta de maneira tão determinante o que seria classificado como “tempo livre”, estes funcionários precarizados tornar-se prisioneiros de um círculo empregatício vicioso, que não os especializa e que, além disso, os fragiliza emocionalmente e fisicamente. Afinal, são conhecidas as deficiências vinculadas à segurança do trabalho neste setor, conforme percebido na entrevista supracitada.
De acordo com uma reportagem, publicada em abril de 2018, sobre as estatísticas de adoecimento empregatício em Sergipe, Brasil, os motivos de afastamento no telemarketing são causados justamente pela aplicação de metas abusivas, tal qual ocorre no panorama nacional. Na reportagem, o procurador local do Ministério Público do Trabalho explica que os registros de adoecimento psicológico não seriam tão altos quanto se vê no dia a dia, declaração que vai de encontro aos depoimentos de nossos entrevistados, unânimes na indicação das perseguições empregatícias como gatilhos de adoecimento psicológico. A fim de aconselhar aqueles que têm a intenção de ingressar nesta profissão, Rosália explica de que maneira luta para manter-se saudável após o expediente: “tente ser o mais forte possível para não se deixar abalar com as cobranças e não leve nada do trabalho para casa”. Pena que, na prática, não é tão fácil cumprir estas simples recomendações…
* Observação: a pedido dos entrevistados, não foram utilizados seus sobrenomes e, num dos casos, utiliza-se um prenome ficcional. Como os demitidos possuem processos judiciais em aberto e os que ainda trabalham temem sofrer represálias, tal cuidado foi adotado nesta reportagem.