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“Apesar das vicissitudes, quando tu morres, triunfas enquanto idéia”: uma reflexão sobre a vida

“Apesar das vicissitudes, quando tu morres, triunfas enquanto idéia”: uma reflexão sobre a vida

Na situação em que pronuncia o veredicto acima, o ator Marcelo Diorio – entrevistado ao longo dos cabalísticos 69 minutos de “A Rosa Azul de Novalis” (2019, de Gustavo Vinagre & Rodrigo Carneiro) – comenta sobre alguns percalços da biografia da cantora Nina Simone (1933-2003). Vítima de violência doméstica e declarada como um má mãe, esta cantora, ao falecer, foi dotada de um halo positivo que encobriu as incongruências inevitáveis de seu percurso na Terra, o que acontece com quase todo mundo, inclusive. A morte tem este poder quase hagiografizante. Por isso, “sou um necrófilo”, confessa o ator, eternizado depoimentalmente num dos filmes brasileiros mais radicais do século XXI…

Embasado numa estrutura inicialmente simples (e barata), “A Rosa Azul de Novalis” possui como imagem de abertura um ‘close-up’ anal: enquanto lê de ponta-cabeça, a fim de submeter-se a uma exigência médica para suprir a sua carência de vitamina D – resguardada através de banhos de sol em partes bem específicas de seu corpo – Marcelo Diorio, que é soropositivo, desnuda-se para a câmera. Não apenas fisicamente, mas existencialmente, identitariamente: busca uma cumplicidade com os espectadores que, não raro, redunda em escândalo. Em vários dos festivais cinematográficos em que foi exibido, este filme sofreu a ameaça da censura e/ou foi tachado de pornográfico. Quando as suas intenções são bastante claras desde o início do projeto…

Extremamente bem-resolvido com a sua própria (homo-)sexualidade, o protagonista deste filme rememora situações opressivas em seu núcleo familiar mais tenro: relata que a sua consolidação enquanto “bichona” corresponde exatamente àquilo que sua avó temia que ele se tornasse e compartilha que o maior desgosto de seu pai era que o filho apreciasse o ato de “dar o cu” (ou seja, praticar sodomia). Por mais que os integrantes masculinos de sua família fossem quase todos adúlteros, Marcelo encontrou num irmão mais novo um inusitado conforto: conseguiu obter dele uma relação sexual incestuosa prolongada por vários meses, até que este faleceu precocemente, num trágico acidente automobilístico. No porta-luvas do carro, dois exames de gravidez efetuados por diferentes namoradas do falecido. A tradição de típicas mentiras heterossexuais prosseguiria, caso ele continuasse vivo…

Ao narrar estas anedotas familiares, Marcelo não utiliza um tom julgamental ou acusatório, mas defensivo, em primeira pessoa, de compreensão aberta das hipocrisias sexistas legitimadas por uma sociedade machista e classista. E, não por acaso, imediatamente em seguida, ele apresenta-nos aos seus parceiros virtuais em aplicativos eletrônicos para obtenção de sexo fugaz: um dos rapazes é podólatra; outro urina nele com relativa freqüência; um terceiro introduz-lhe componentes cibernéticos no ânus; um quarto ilude-se com os seus gemidos histriônicos durante a transa; um quinto ejacula em seu rosto, numa alusão litúrgica ao poeta romântico alemão Novalis, que viveu entre 1772 e 1801, numa obsessão intensificada pela busca da rosa azul do título. Se, no século XVIII, esta busca tendia a ser infecunda para Novalis, hoje, flores de quaisquer cores, por mais artificiais que pareçam, podem ser encontradas facilmente em qualquer supermercado de esquina. As utopias perderam o sentido na contemporaneidade? Essa talvez seja a questão mais elementar deste filme-ensaio primoroso, que defende a sexualização como traço elementar do cotidiano saudável. Mesmo para quem tem AIDS, inclusive: a saúde defendida pelo filme é de outra esfera, transcendental, holística.

Alegando ser uma reencarnação contemporânea de Novalis, Marcelo Diorio interage com impressionante desenvoltura com os diretores/entrevistadores do filme, irritando-se quando perguntam-lhe “o que ele faz” – ao que ele responde que a sua imponência reside justamente em “ser inútil” – e participando de reconstituições surrealistas de sua vida, como o funeral de seu irmão-amante e a reprodução de lampejos comemorativos da infância na pomada verde espalhada em seu rosto. Um filme belíssimo e mui criativo em sua sensibilidade eminentemente política, que incomoda sobremaneira os apoiadores bolsonaristas, que clamarão por seu boicote tão logo saibam de sua existência e conteúdo. Por isso, é mister ver e difundir esta jóia da Sétima Arte o quanto antes: um dos melhores e mais eloqüentes filmes de 2019!

Em meio às suas falas repletas de vigor e erotismo, Marcelo eventualmente pede para quedar em silêncio ou oferece café à equipe técnica do filme. É um homem real, que precisa lidar com cuidados muito específicos, em razão da imunodeficiência que o aflige. Por mais ousado que o filme seja desde o primeiro instante, Marcelo reclama que ele tende a ficar “careta” e, recitando poemas da gloriosa Hilda Hist (1930-2004), oferta seu ânus ao foco intenso mais uma vez e traça paralelismos entre esta parte socialmente obnubilada do corpo e a existência de Deus: “Deus é nosso cu, onde todos nós perdemo-nos”, apregoa ele, num dos momentos conclusivos do filme. Obrigatório enquanto petardo vivo de suma resistência!

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