Entre os brasileiros que elegeram Jair Bolsonaro como presidente da República, uma expressão demeritória instaurou-se como sinônimo comemorativo para a morte de bandidos: “cancelar o CPF”. Para este segmento populacional – que, hipocritamente, autodefine-se como sendo defensor dos “bons costumes” – o assassinato intencional (na maior parte dos casos, sob a alegação de legítima defesa) de criminosos equipara-se ao impedimento da usabilidade do Cadastro de Pessoas Físicas (CPF). Este cadastro é um dos principais documentos individuais dos cidadãos brasileiros, sendo composto por 11 dígitos e essencial para transações econômicas ou participação em programas de benefícios estatais e federais. Para os “cidadãos de bem” (vulgo bolsonaristas), este documento é um adido de caráter…
Esta introdução conduz-nos a outra pecha bolsonarista: ao defenderem o jargão de que são “liberais na economia, mas conservadores nos costumes”, eles proclamam uma verdadeira guerra sub-reptícia contra a liberdade de expressão e os produtos artísticos com caracteres lascivos. Apregoam a urgência de manifestações culturais “sem vieses ideológicos” (ou seja, comprometidos apenas com a explicitude clicherosa da doutrina cristã) e financiam a produção massificada da mesmice – numa hipertrofia subqualitativa que, infelizmente, ignora o pleonasmo susomencionado. E, por incrível que possa parecer, isso ainda é o menos pior!
Recentemente, o secretário da Cultura Roberto Alvim foi demitido por imitar ostensivamente a pomposidade dos discursos do mnistro nazista da Propaganda Joseph Goebbels [1897-1945], além de plagiar trechos de um de seus discursos. Em seu lugar, foi convocada a atriz Regina Duarte, conhecida por seu antipetismo amedrontado e por seu apoio irrestrito ao humor preconceituoso do atual presidente. Ministério da Cultura não existe mais no Brasil. E a Secretaria correspondente, subordinada ao Ministério da Cidadania, está sob o gerenciamento de artífices da malevolência. Resta-nos torcer para que haja algo de moralmente válido em meio aos produtos culturais financiados e/ou distribuídos pela corja bolsonarista?
Mantenhamos o assunto através da mudança de foco, analisando por fingido acaso a terceira maior bilheteria cinematográfica de 1968, quando foi assinado o infame Ato Institucional nº 5, que restringiu violentamente a expressividade dos artistas e comunicadores brasileiros: “Se Meu Fusca Falasse” (1968, de Robert Stevenson) – tradução titular brasileira para “The Love Bug” – foi lançado num ano em que o Código Hays entrava em desuso em Hollywood e quando o movimento ‘hippie’ foi devidamente assimilado pelo ‘establishment’. Numa cena muito divertida, uma mulher pede socorro por estar trancada no interior de um automóvel, e o ‘hippie’ que a observa apenas exclama: “somos todos prisioneiros, minha querida!”. Há algo merecedor de observação nestas entrelinhas!
“Se Meu Fusca Falasse” possui as características que garantiam o sucesso imediato das produções cinematográficas dos estúdios Disney: personagens carismáticos, tendência progressiva à prosopopeia, música-tema agradável e sequências de ação muito divertidas. Entretanto, não dispensam uma boa condução directiva e enredística: apesar de ser destinado ao público infanto-juvenil, o filme propõe alguns dilemas morais sob o jugo do capitalismo que dizem muito aos adultos obcecados pela competitividade contemporânea.
O protagonista do filme, Jim Douglas (Dean Jones), é um piloto desengonçado que participa de corridas automobilísticas em que seus competidores são muito mais jovens. Seu pai tenta demovê-lo desta atividade malograda, mas ele persiste correndo, por mais que esteja progressivamente acidentado. Quando vai a uma concessionária, no interesse de comprar um novo carro esportivo (mesmo estando sem dinheiro), encontra o Fusca do título brasileiro, que demonstra algumas peculiaridades antropomorfizadas, sendo atacado pelo dono do estabelecimento, o perverso Peter Thorndyke (David Tomlinson). Ao defender o fusquinha, este afeiçoa-se a Jim Douglas, e o persegue até sua casa, obrigando-o a adquirir o mesmo, após alguns quiproquós policiais. Quando o melhor amigo de Jim, Tennessee (Buddy Hackett) vê o Fusca, logo detecta nele uma personalidade chamativa, e o batiza com o nome de um tio espirituoso, Herbie. Pouco a pouco, Jim e Herbie formarão uma equipe vencedora em corridas automobilísticas.
Ocorre que, no afã por enriquecer, Jim insiste em comprar um carro mais potente e ignora a afetividade de Herbie, agindo de maneira presunçosa e oportunista. Numa cena atordoante, o carrinho chega a tentar o suicídio, sendo resgatado a tempo por um arrependido Jim. Depois que ele apaixona-se pela secretária do vilanesco Thorndyke, Carole Bennett (Michele Lee), percebe que Herbie tentou ajudá-lo a conquistá-la desde o início, de modo que, previsivelmente, ao final tudo dá certo: Jim e Herbie consagram-se vitoriosos numa corrida marcada pelas trapaças extremas do inescrupuloso Thorndyke e um casamento ocorre. Três continuações virão, além de uma regravação em 1997. É assim que funciona o processo de comercialização das boas intenções. É perverso, mas edulcorante também. Entre a Disney e o nazismo, quem serve mais aos interesses dos alegados cristãos bolsonaristas?