Quem cresceu no Brasil, nas décadas de 1970 a 1990, acompanhou um fenômeno interessante: o modo como as telenovelas de uma emissora em particular, a Rede Globo de Televisão, influenciou os costumes populares e determinou alguns padrões de elevada audiência, em horários específicos de sua programação. Hoje em dia, isso não ocorre com a mesma frequência: não apenas pela queda de qualidade das produções, decorrente da exiguidade de autores com padrões tramáticos expressivos, mas sobretudo pela competição com os serviços de ‘streaming’, que condicionaram a audiência a consumir os produtos audiovisuais a qualquer momento. Perdeu-se a tradição de acompanhar uma determinada narrativa em horários específicos, por exemplo…
Se, antigamente, “o Brasil parava” para assistir aos capítulos finais ou às revelações das telenovelas, hoje testemunhamos um fenômeno óbvio e um tanto desistente: a adesão às regravações de obras de sucesso, em épocas anteriores. Vide os comentários progressivamente insatisfeitos quanto à nova versão de “Vale Tudo”, originalmente exibida em 1988, que não soube adaptar com efetividade a argúcia de seu texto à contemporaneidade. De alguma maneira, é isso o que percebemos no filme “A Vilã das Nove” (2024, de Teodoro Poppovic), que aborda um tipo de situação outrora comum, mas hoje não tão evidente, que é a identificação da platéia com os personagens telenovelescos.
Dirigido pelo mesmo realizador da ótima comédia “TOC: Transtornada Obsessiva Compulsiva” (2017), “A Vilã das Nove” conta a história de uma preparadora vocal chamada Roberta (Karina Teles, ótima como sempre) que, durante um passeio num aquário público com a sua filha Nara (Laura Pessoa), é chamada de Eugênia, por uma mulher que alega desconhecer. Ao ajudar um ator pernambucano (vivido por Rodrigo Garcia, que parece compartilhar um dilema que aconteceu consigo) a perder o seu sotaque característico, ela é convidada para a festa de lançamento de uma telenovela chamada “A Má Mãe”, e fica espantada ao acompanhar o enredo da mesma…
A cargo da atriz ascendente Paloma (excelentemente vivida por Camila Márdila, por sua vez), a protagonista desta telenovela chama-se justamente Eugênia, e causa comoção entre os espectadores, pela maneira com que abandona o seu marido e a sua filha. Tanto que, ao conversar num bar, Paloma é agredida por mulheres que sentem raiva da referida personagem, que, maquiavelicamente, esvazia a conta bancária de seu marido abandonado. Reconhecendo neste enredo um período de sua vida que ela se esforça para esquecer, Roberta desconfia que alguém que a conheceu está ajudando o famoso autor Modesto Estrella (Antônio Pitanga) a escrever os capítulos. É quando descobrimos que a primeira filha de Roberta, Débora (Alice Wegmann) é esta auxiliar enredística. Quais são as suas intenções? Só assistindo ao filme para descobrir!
Oportunamente situado em 2012, quando a programação televisiva ainda atraía a atenção das pessoas, o roteiro de “A Vilã das Nove” – escrito pelo próprio cineasta, junto a dois colaboradores — brinca com o dito popular que apregoa que “a vida imita a arte”, tanto quanto a arte também imita a vida, retroalimentando-se dela para configurar-se enquanto tal. Numa situação tão inteligente quanto divertida, Débora irrita-se com uma alteração tramática proposta por Modesto, que prefere exortar a reconciliação entre duas personagens, ao invés de estimular a vingança. Num dos variegados jogos especulares da trama, é o que também é proposto a Roberta, num inusitado reencontro com a sua filha crescida. Mesmo quando prejudica a verossimilhança em prol das soluções discursivas, este filme consegue fascinar o espectador, graças a uma eficiente trilha musical (que conta com a execução de “Pessoa”, na voz de Marina Lima, num momento-chave) e a um elenco heterogêneo, que também conta com as participações de Murilo Sampaio (um ator versátil, que consegue se destacar num papel burocrático) e do cantor Negro Léo, que interpreta Cássio, o segundo marido de Eugênia/Roberta. Em seu humor acessível e metalinguístico, “A Vilã das Nove” é um filme que merece ser descoberto pelos apreciadores do cinema brasileiro que não tem receio em flertar com as convenções de gênero — exatamente como as telenovelas sempre fizeram!
Wesley Pereira de Castro.
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