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Educação é um conceito eminentemente político. Caso contrário, incorre no lastro bancário!

Educação é um conceito eminentemente político. Caso contrário, incorre no lastro bancário!

O jogo de rimas deste título não é casual: numa conjuntura ideológica em que o legado de Paulo Freire [1921-1997] foi vilanizado, para fins eleitoreiros, convém resgatar o que de mais original este educador possui, em termos de refutação estatística. Segundo este autor, o medo da liberdade, imputado pelos colonizadores, faz com que a gregarização seja preferida à convivência autêntica, o que se configura num dilema essencial dos oprimidos. É este que a pedagogia deve enfrentar: “a libertação, por isso, é um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce deste parto é um homem novo, que só é viável na e pela superação da contradição opressores-oprimidos”, lemos na “justificativa da ‘pedagogia do oprimido’”, capítulo primeiro do livro homônimo.

No livro em pauta, a educação bancária é definida como aquela em que “o ‘saber’ é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão – a absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no outro”. O livro foi escrito em 1968, quando o seu autor encontrava-se em exílio no Chile, em razão de perseguições violentas no Brasil, então sob o jugo de uma inclemente ditadura militar. O livro permaneceu proibido por alguns anos e, nos dias atuais, periga ser novamente censurado pelos bolsonaristas, visto que o conteúdo da obra esmiúça as suas estratégias vilanazes de dominação…

A extinção do Ministério da Cultura e a inefetividade do Ministério da Educação são ferramentas acessórias de manutenção da ignorância denunciada por Paulo Freire há várias décadas, e a progressiva mecanização do ensino, no sentido mais behaviorista do termo, é ofertada como panacéia no extermínio da “doutrinação comunista” que, segundo a Extrema-Direita, existe nas universidades públicas e federais. Para estes, as instituições de ensino são meros recantos de “baderna”. A ignorância da população é a meta a ser alcançada, a fim de que sejam garantidas múltiplas reeleições – ou a própria abolição dos processos eleitorais, como já ocorreu anteriormente…

É nesse sentido que o surgimento de um documentário como “Atravessa a Vida” (2020, de João Jardim) insurge-se como tão necessário. Filmado em 2018, justamente durante a campanha política que culminou na trágica eleição de Jair Bolsonaro como presidente do Brasil, o filme acompanha o cotidiano de uma escola infraestruturalmente precária na cidade interiorana de Simão Dias, no agreste de Sergipe, o menor Estado brasileiro. Não explicita-se o motivo da escolha desta locação, mas esta talvez esteja relacionada à noticiabilidade congratulatória da formatura em Medicina do jovem quilombola João Santos Costa, filho de lavradores que estudou na mesma escola pública mostrada no filme. Ele foi a demonstração de que as cotas raciais implantadas sob a égide do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, foram bem-sucedidas. Por isso, ameaçam tanto o (des)governo atual!

Nas primeiras imagens do documentário, um professor de Filosofia explica para os seus alunos as diferenças entre os conceitos aristotélicos de “ato” e “potência”. Do lado de fora, eletricistas e pedreiros exercem as suas barulhentas atividades em pleno horário escolar. O pré-julgamento é inevitável: estamos num ambiente de inequívoca miserabilidade e, como tal, tudo converge para a impressão de que os alunos mostrados serão reprovados no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Isso é reiterado pelo chiste “agostiniano” de uma aluna: “quando a esperança morre, não haverá mais futuro?”. A resposta está além do filme…

Por motivos históricos, este filme concebe a educação como algo eminentemente político. Durante as aulas, o período ditatorial é freqüentemente mencionado, demonstrando que os professores estão preocupados com o que ocorre no País. A câmera não é disfarçada – pelo contrário, é encarada como algo inconveniente inúmeras vezes – e, nalguns momentos, escolhe alguns alunos, que relatam estórias dolorosas de depressão e automutilação, agressões familiares, abandono parental e outras situações comuns (mas não exclusivas) àquela região. A despeito de tudo isso, no Nordeste brasileiro, o bolsonarismo perdeu. Ou talvez justamente por causa disso!

Se, num primeiro momento, o filme perturba por seu enfoque um tanto zoológico, expondo as más condições infraestruturais da escola de maneira compreensivamente alarmante, em câmera lenta, pouco a pouco, professores e alunos impõem-se discursivamente. O zeloso comprometimento da diretora da escola em pauta – Colégio Estadual Dr. Milton Dortas, na cidade sergipana de Simão Dias – converte-se em êxitos palpáveis, que ultrapassam as estatísticas que servem de epílogo do filme. Da mesma maneira que as tristezas relatadas pelos alunos são enfrentadas como um necessário aprendizado, a educação é apresentada em seu viés mais transformador, na prática comunitária. O exemplo de resistência de Canudos não é ensinado por acaso!

Para um sergipano, a reação a este documentário é inevitavelmente antitética e esbaforida: trata-se de um retorno do diretor ao assunto que abordara num longa-metragem prévio, “Pro Dia Nascer Feliz” (2005), em que compara os sistemas educacionais de alguns Estados. No filme mais recente, o enfoque é concentrado na escola supramencionada, de modo que o elã educativo dos personagens reais consegue contornar o cabedal de problemas exibidos de maneira fetichizada no início do filme. A escola apresenta características típicas de qualquer escola brasileira: corpo docente sobrecarregado de tarefas e lidando com recursos escassos; corpo discente eventualmente desmotivado e atravessado por crises emocionais marcantes da adolescência. Mas, por estar numa região erma do Nordeste brasileiro, há apanágios muito específicos. A seca castiga não apenas a paisagem física, mas também a humana!

Se, num primeiro momento, os estudantes são apresentados de maneira desdenhosa, afirmando chistosamente que, caso não sejam aprovados numa universidade, podem conseguir emprego “em qualquer esquina” ou ganhar na loteria, pouco a pouco os professores vão demonstrando que conseguem erigir mudanças consideráveis, em razão de tentativas renitentes de conscientização durante os temas discutidos em aula. Num dado momento, a tela fica sem imagens, durante o anúncio de apuração dos votos. Ao final, as estatísticas se instauram, e o filme destaca os alunos que foram aprovados no ENEM. Talvez seja um desfecho abrupto, equivocado em sua reiteração bem-intencionada da lógica bancária. Mas um jargão benfazejo é confirmado: a educação liberta!

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