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De onde provém a solidariedade para quem está no fundo do poço?

De onde provém a solidariedade para quem está no fundo do poço?

Após a eclosão do COVID-19 [vulgo CoronaVírus] e sua posterior disseminação ao redor do mundo, foi amplamente recomendado que as pessoas fiquem reclusas em casa, a fim de não proliferar ainda mais a doença que está dizimando várias pessoas, sobretudo os idosos. Esta recomendação, entretanto, não esteve imune às críticas ideológicas. Por mais acertada e efetiva que seja a decisão de manter-se em quarentena, houve quem reclamasse que isto designa um privilégio, dado que os trabalhadores precarizados não podem faltar aos seus empregos. Reclama-se, portanto, que doença e procedimentos preventivos derivados associam-se às classes aquisitivamente mais favorecidas. Produtos de higiene e artigos alimentícios começam a faltar nos supermercados, visto que algumas pessoas compram mais do que efetivamente precisam. É necessário acrescentar a qual classe social elas pertencem?

Longe de incorrer num julgamento contraproducente que tornaria ainda mais evidente a extrema polarização política que caracteriza os tempos atuais, a análise das reclamações supracitadas faz com que sejam percebidas diferenças marcantes de enfrentamento por parte de militantes de esquerda e de direita. No primeiro caso, mesmo quando recorre-se a um senso de humor imediatista que desconsidera as contradições inevitáveis do capitalismo, houve adesão generalizada às práticas de quarentena, “para quem puder ficar em casa”; no segundo caso, as paranóias belicosas sobressaem-se. O exemplo retrógrado do presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, destaca-se mui negativamente neste sentido: além de ignorar protocolos de segurança médica, cumprimentando publicamente seus apoiadores, e de disseminar estouvadamente exortações paranoticiosas sobre remédios que poderia ajudar no tratamento contra o CoronaVírus, ele insiste em referir-se à nova e devastadora doença como algo mais que uma “gripezinha”…

Como era de se esperar, também abundam as notícias falsas sobre um suposto ataque biológico comandado pela China e as receitas equivocadas sobre a produção de álcool em gel doméstico, mas o conselho mais difundido e recomendado segue sendo o isolamento social, para todas as classes. Cidades outrora muito movimentadas apresentam-se esvaziadas, exceto por aqueles que trabalham em serviços considerados essenciais (restaurantes, farmácias, supermercados, etc.) e por quem não consegue exigir seus direitos empregatícios essenciais. Apesar de ataques ideológicos continuarem numerosos, pouco a pouco os cidadãos aderem à quarentena. E, para auxiliar neste esforço coletivo, vários serviços de ‘streaming’ e TVs por assinatura estão disponibilizando gratuitamente parte considerável de suas programações.

Aproveitando esta última deixa, convém indicar um ótimo filme de ficção científica distribuído pela Netflix que tem muito a ver com tudo o que foi escrito até então: a produção espanhola “O Poço” (2019, de Galder Gaztelu-Urrutia) sintetiza de maneira genial os conflitos classistas da contemporaneidade. Logo na abertura, uma taxonomia alarmante: “existem três tipos de pessoas: as de cima, as de baixo, e as que caem”. Qual o enredo do filme? Esforçar-nos-emos para resumi-lo aqui sem estragar as variegadas surpresas do brilhante roteiro de David Desola e Pedro Rivero.

Na sequência inicial de “O Poço”, acompanhamos o atordoamento de Goreng (Iván Massagué), que desperta numa cela de concreto onde consta um número na parede, 48. Sem entender direito onde está, ele tenta comunicar-se com seu colega de cela, Trimagasi (Zorion Eguileor), mas este é refratário ao contato amistoso. Demonstra-se ríspido, quiçá traumatizado, e nega-se a explicar a situação ao seu desesperado companheiro. Aos poucos, ele antecipa a premissa básica do local: há diversos níveis de aprisionamento ao longo do Poço, sendo que, em cada um deles, a dificuldade maior é lidar com a escassez de comida, servida de maneira programada e insuficiente, de modo que os níveis inferiores são obrigados a comer o que sobra dos níveis superiores. Obviamente, quem está confinado abaixo é obrigado a recorrer ao canibalismo. Mas, por enquanto, tudo são especulações: o filme é intencionalmente cauteloso na disseminação informativa…

À medida que o filme avança, Goreng transita por diversos níveis do Poço e depara-se com uma interessantíssima metáfora de nossa sociedade, em cujo projeto está a necessidade de obtenção de “solidariedade espontânea” entre as diferentes classes sociais. Com a aparição da personagem Imoguiri (Antonia San Juan), o Poço passa a ser descrito como “Centro Vertical de Autogestão”, o que leva-nos a pensar em conceitos durkheiminianos sobre divisão social. Entretanto, o filme afasta-se do esnobismo das pretensões academicistas. Trata-se de uma produção ‘gore’ de primeiríssima qualidade, com cenas impressionantes de violência e situações que obrigam-nos a repensar a nossa maneira de comportar-nos em relação ao próximo, seja quem possui mais bens materiais que nós, seja quem está em condições menos favorecidas. O ódio implementado por determinados vilões sociais/governamentais tende a fazer com que vejamos ambos como inimigos. Não precisam ser. Em época de pandemia, a mensagem deixada em aberto pelo filme obriga-nos a reagir emergencialmente à solidariedade. Somente assim pode(re)mos sobreviver!

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