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“Hoje é nós, e amanhã é nós de novo!”: ou de como erigir um lugar de fala em meio à contínua assimilação…

“Hoje é nós, e amanhã é nós de novo!”: ou de como erigir um lugar de fala em meio à contínua assimilação…

No prefácio do lançamento brasileiro de “Crítica da Imagem Eurocêntrica”, de Robert Stam & Ella Shohat, o crítico cinematográfico Ismail Xavier disassocia o que hoje é amplamente difundido como lugar de fala de uma mera “autoridade somática”. Segundo ele, “não faz sentido analisar os discursos a partir de uma exclusiva autoridade existencial do oprimido”, de maneira que, citando os autores, mais que a correção da linha ou a identidade do falante, o mais emergencial neste processo seria o direcionamento da energia discursiva.

A partir disso, numa corruptela interpretativa um tanto forçada, mas não desprovida de sentido, podemos investigar em que medida o ‘funk’ brasileiro instaura-se como elemento de “cultura popular”, por mais que a assimilação midiática das grandes gravadoras eventualmente estraçalhe os ímpetos protestantes ou validamente expositivos de alguns MC’s [Mestres de Cerimônias] espontâneos.

O ‘funk’, portanto, muitíssimo bem-sucedido enquanto gênero musical vendável no Brasil, é entulhado de fórmulas rápidas, que transferem para segundo plano, em muitos casos, aquilo que é reverberado pelos artistas em relação às suas condições inequívocas de vivência pessoal. Conclusão imediata: é atacado por parte da crítica especializada e defenestrado pelos partidários do moralismo impositivo, os ditos “cidadãos de bem” que ecoam os preconceitos abundantes da atual configuração política no poder – que não será mencionada nomenclaturalmente desta vez, sob pena de invocação renitente do Mal…

Todo este intróito é uma maneira de declarar o quão valiosa é a proposta da série em seis episódios “Sintonia”, lançada em 09 de agosto de 2019, pela plataforma Netflix. O núcleo temático dos episódios é compartilhado por três personagens, que moram numa mesma comunidade periférica da cidade de São Paulo: o ‘rapper’ amador Donizete (Jottapê Carvalho), filho de um casal de evangélicos que possuem uma mercearia; a arrojada e independente Rita (Bruna Mascarenhas), que sobrevive como camelô; e o recém-casado Nando (Christian Malheiros), que galga a sua ascensão enquanto vindouro subchefe do narcotráfico local. Numa descrição rasteira, estes personagens são estereótipos abundantes no que foi apelidado pela comunicóloga Ivana Bentes de “cosmética da fome”, porém são eminentemente verossímeis em sua proliferação citadina.

Não obstante o roteiro desta série incorrer obrigatoriamente nalguns clichês, o diferencial elogiável em reação a “Sintonia” está no modo como evita os julgamentos deterministas. Ou seja, os comportamentos apressadamente egoístas dos personagens são questionados pela manutenção da amizade que os entrelaça vicinalmente, de maneira que sentimos profunda compaixão de Nando, mesmo quando ele comete assassinatos violentos, e torcemos pelo sucesso de Rita em sua ambição evangélica, ainda que saibamos que as motivações para edificação de uma igreja nem sempre são religiosas…

Para além desta divisão tripartite do protagonismo juvenil, é o MC Doni quem recebe maior atenção da narrativa concatenada, visto que ele assume-se como uma espécie de porta-voz regional, em canções com rimas contagiantes e letras um tanto boçais. E, tal como ocorre com os outros dois amigos, nutrimos uma simpatia legítima por seu meteórico percurso fonográfico: ele merece fazer sucesso, mesmo quando comete algumas injustiças contra entes queridos, como faltar a eventos sobre os quais prometeu enfaticamente que compareceria. Ele é uma metonímia daquilo que o próprio idealizador da série, o produtor cultural KondZilla, converte em produto instantâneo de consumo há vários anos. Goste-se ou desgoste-se do ‘funk’ contemporâneo, há algo valiosamente expressivo ali. O mesmo quanto à invasão neopentecostal, que serve-se oportunamente de chavões vocacionais como: “Deus não escolhe os capacitados, mas capacita os escolhidos”!

Além de possuir um ritmo mui divertido, servindo-se bem de convenções melodramáticas de gênero, “Sintonia” destaca-se por seus paradoxos de empoderamento, de modo que em cada um dos nucléolos tramáticos há uma mulher poderosa e movida por condições pragmáticas de sobrevivência em ramos dominados por homens: desde a MC Dondoka (Leilah Moreno), que contribui para a escalada da fama de MC Doni, após alguns atritos iniciais, até a dondoca Márcia (Dani Nefussi), esposa de um poderoso traficante preso, que propõe testes de resistência a Nando, em sua imersão no crime, passando pela ilibada pastora Sueli (Fernanda Viacava), que manifesta intenções distintas de Rita quanto à popularização do evangelismo. E tais modelos são apenas pontos de partida para a recomendação efusiva desta ótima série brasileira…

A fim de não revelar detalhes específicos das tramas dos episódios, e estragar assim o prazer de quem ainda não viu “Sintonia”, interrompe-se bruscamente esta resenha, mas convém enfatizar a sapiência dos realizadores quanto à concepção das reuniões dos “funcionários” do tráfico de drogas como arremedos de palestras motivacionais de grandes empresas, chegando-se ao cúmulo de ler-se um estatuto com princípios éticos antes de firmar-se como comandante de uma boca de fumo. Infelizmente, na vida real é assim, o que deixa claro quem é o inimigo comum de personagens e espectadores: a universalização consensual de um projeto de dominação capitalista que a tudo ingere, a tudo delimita e a tudo converte em mercadoria – e que engendra dentro de si mesmo as forças que poderiam destruí-lo, se não fossem exauridas pelas ações anteriormente programadas!

Wesley Pereira de Castro.

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