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O novo petardo do preto que, definitivamente, não “passou a vida em branco”…

O novo petardo do preto que, definitivamente, não “passou a vida em branco”…

Em 2017, o ‘rapper’ mineiro Gustavo Pereira Marques, mais conhecido como Djonga, lançou o seu primeiro álbum de estúdio, “Heresia”. Apesar das qualidades notáveis, a recepção foi localizada, destinada sobretudo aos admiradores contumazes deste importantíssimo gênero musical de protesto. Em 2018, quando foi lançado “O Menino que Queria Ser Deus”, a consagração crítica foi avassaladora: várias canções foram alçadas à categoria de obras-primas do ano em pauta, sobretudo a faixa que contém como refrão o título do álbum, que rendeu um videoclipe exemplar.

Em 2019, o ‘rapper’ volta à cena com “Ladrão” e presta-se magistralmente à explanação de seus temas-chave, dialogando tanto com admiradores quanto detratores. Na faixa-título do novo disco, a sexta, ele dispara, sobre a própria discografia: “você piscou, eu já tô no terceiro/ Tem gente que nem entendeu o primeiro inteiro/ Arte é pra incomodar, causar indigestão/Antes de tu engolir, te trago um prato cheio”. Definitivamente, precisamos falar sobre este artista!

Logo no título de seu álbum, o ‘rapper’ expõe uma problemática múltipla, a partir da palavra que ostenta o disco: numa perspectiva interpretativa bastante laudatória, o cantor assume tanto a sua insatisfação frente à apropriação da cultura negra por uma elite branca quanto a sua antropofagia de temas e estilos, além de disparar contra o racismo infelizmente dominante na sociedade brasileira, que comumente associa os negros a estereótipos de bandidos. Na faixa de abertura, “Hat-Trick”, o cantor desfaz a polissemia vocabular de maneira incisiva: “desde pequeno, geral te aponta o dedo/ No olhar da madame, eu consigo sentir o medo/ Cê cresce achando que cê é pior que eles/ Irmão, quem te roubou te chama de ladrão desde cedo”. Enquanto denúncia: genial. Musicalmente, idem!

Seguindo em frente com a sua metralhadora de diatribes, Djonga não poupa reclamações contra o barbarismo que tomou de assalto o Brasil em sua perspectiva eleitoral. Ainda na primeira faixa, ela lamenta a aparente liberação do preconceito, em razão dos discursos de ódio referendados pela extrema-direita brasileira estarem cada vez menos discretos, enquanto que, na faixa 02, “Bené”, ele refere-se diretamente a situações de incômodo político associadas ao (des)governo do atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro: “homens maus destróem perspectivas/ Perplexo só fica quem crê em conto de fadas/ No país onde a facada que não aleija, elege/ Atira em mim que eu mudo tudo, e conversa encerrada”. Versos de protesto que merecem ser aplaudidos de pé!

Malgrado a aparente autocongratulação que surge numa ou noutra faixa – cuja função é de assunção do empoderamento negro, o que é absolutamente defensivo e totalmente defensável no contexto em pauta – o excelente terceiro álbum de Djonga também demonstra que é urgente e necessário semear o amor. Nas faixas 03 (“Leal”) e 05 (“Tipo”), o cantor expõe a sua deferência pela(s) mulher(es) que ama, deixando patente a sua crença no sentimento que é vivenciado no presente, sem amarras ou ditames, mas experimentado ao máximo no auge de suas manifestações: “impossível de adestrar esse amor vira-lata/ Vai ser nós contra o mundo sempre/ Contra toda caretice de mãos dadas”. Ou seja, o ‘rapper’ associa o afeto íntimo à publicidade da resistência enquanto desafio cotidiano, obviamente indicando a sua postura adesiva no embate pela legalização da maconha: “acende um beck e vê a Lua/ Um copo de vinho deixa ela maluca”. Extraordinário!

Na dezena de canções que compõe o álbum, ainda temos espaço para: uma menção titular a um dos clássicos inigualáveis do cinema brasileiro, na faixa 05, “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, canção que contém um de seus versos mais brilhantes, quando fala que “meritocracia pra pobre é só se a frase for ‘morreu porque mereceu’”; uma ode aos laços de sua família matriarcal, em que a voz sua própria avó surge por sobre os versos contundentes da faixa 07, “Bença”; e uma aparição radiofônica esfuziante da cantora Elis Regina (1945-1982), que entoa o refrão de “Romaria” no desfecho de “Falcão”, última faixa do disco. Trabalho de gênio, sem sombra de dúvida!

No que diz respeito às reações de repúdio ao trabalho deste ‘rapper’, a acusação mais desgastada fundamenta-se na alegação de um suposto “racismo reverso”, por conta do videoclipe agressivo do ‘single’ “A Música da Mãe”, em que o artista chuta implacavelmente um imitador branco. Sem desperdiçar ênfase combatente num terreno senso-comunal de deslegitimação midiática, Djonga aborda frontalmente o assunto na oitava faixa de “Ladrão”, “Voz”, onde instaura a invectiva: “o ‘bang’ não é apenas cor, interpretem/ Parece que ainda estão no ano lírico/ Pela cor, cê só não sente o que eu sinto/ Mas pela boca e pelas atitudes, branco é seu estado de espírito”. Com certeza, ainda haverá quem o acuse do que já foi suficiente esclarecido…

Dito tudo isso, podemos concluir esta resenha assaz entusiástica com a declaração de que, com o lançamento recente de “Ladrão”, temos acesso a um dos melhores discos lusófonos do ano, bastante coadunado aos clamores políticos atuais e elevando a um ponto culminante os méritos identitários do ‘rap’ brasileiro. Djonga é o porta-voz sem concessões de uma classe social comumente traída pela mídia, pelos representantes governamentais e até mesmo pela fama obtida. Na faixa 09, estilizada como “Mlk 4tr3v1d0”, ele esbraveja: “a gente chegou muito bem, sem desmerecer a ninguém/ Trazendo no peito muito preconceito, e um certo desdém/ E, hoje em dia, eu posso dizer que essa música é minha raiz/ Tá chovendo de gente que fala de ‘rap’ e não sabe o que diz”. Está mais do que dado o recado!

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