A fórmula contida no título foi extraída do filme de guerrilha intelectual “Partner” (1968), terceiro longa-metragem do genial cineasta Bernardo Bertolucci (1941-2018). Nesta obra, o versátil ator francês Pierre Clementi (1942-1999) interpreta dois personagens, ambos nomeados Giacobbe, com base num romance dostoiévskiano sobre cisão de personalidades. Na cena em pauta, um professor de teatro desafia a sua turma a criar ação a partir de situações banais do cotidiano: alguém levanta e toca um instrumento musical, outra pessoa gira em torno de si mesma, abraços e demais interações corporais são estimuladas. “O teatro é uma das vias para se chegar à realidade”, gritava ele. O desafio é para nós, espectadores.
Se, no início, havia o interesse vago de erigir uma narrativa com base na referência literária original, o diretor logo a amplia para um questionamento existencial de ordem política: o protagonista várias vezes direciona-se a nós, espectadores, questionando a letargia de nossos posicionamentos artísticos. É exigido que saiamos às ruas, que ajamos. Estávamos no píncaro de uma revolução cultural que varreu toda a Europa, logo espalhando-se por todos os países, incluindo o Brasil. E, ainda hoje, em 2019, o filme revela-se profeticamente atual.
Ousando ensinar, num púlpito actancial, os passos para a confecção de uma bomba caseira, Bernardo Bertolucci apresenta-nos a um contexto personalístico em que as repressões desejosas dão vazão presencial aos avantesmas da malevolência. Quanto mais se reprime, mais se assassina. “Ejaculem seus desejos, roubem suas alegrias”, clamava o teatrólogo cindido numa cena externa, quando cria que fora abandonado pela “rapaziada”, ou seja, por seus alunos, aparentemente temerosos em executarem na práxis aquilo que fora tantas vezes ensaiados nos palcos. Não é mais ou menos o que acontece com a esquerda política atual?
Recentemente, um famoso jornalista brasileiro, Pedro Bial, escandalizou boa parte de seus espectadores ao entrevistar o autodeclarado filósofo Olavo de Carvalho, guru do bolsonarismo, movimento vexatório de direita, atualmente no poder no País. Insistindo declarativamente nas obrigações de sua isenção profissional, o jornalista confrontou seu entrevistado nalgumas vezes, a fim de não contrariar um posicionamento genérico da emissora para a qual trabalha – a TV Globo – num perpétuo ‘mea culpa’ em relação ao financiamento inicial sob o jugo da Ditadura Militar. Mas o desfecho da entrevista foi bastante elucidativo acerca dos interesses midiáticos levados a cabo pelo apresentador: aparece quem estiver na moda. Os personagens bertoluccianos não estimulavam o ódio aos distribuidores culturais por acaso…
Alicerçado num depoimento repleto de contradições, o discurso olavista esfacela-se em seu próprio pronunciamento: critica o surgimento da idiotia influenciadora, mas o próprio autor assume-se como tal. Repreende os louvores concedidos a pensadores sérios – por conta da filiação esquerdista dos mesmos – e define a si mesmo como mais inteligente que todos os outros. Mora nos Estados Unidos da América por ter sido ameaçado de morte no Brasil, mas admite que não tem nenhum interesse em voltar ao País, em razão de ganhar muito bem por lá. Inicia o programa comemorando que “não deve nada a ninguém, graças a Deus”, e o encerra falando sobre uma campanha de auxílio monetário conduzida por seus admiradores. Julga os ministros do (des)governo atual pela adesão aos seus conselhos obtusos, tachando os seus asseclas de “olavetes”. Está na moda, infelizmente!
Numa das cenas mais elaboradas do filme, o protagonista recebe a visita de uma vendedora de produtos de limpeza com nomes anglofílicos. Ela defende as benesses da higienização e, enquanto demonstra o funcionamento apropriado de uma determinada marca de sabão em pó, é assassinada pelo atormentado teatrólogo (ou talvez por seu duplo). Confessa a ele que o seu impressionante sucesso nas vendas tem a ver com um estratagema elementar: despe-se frente a homens que desejam seu corpo, transformando-os em ativos consumidores não apenas de uma sexualidade capitalizada, mas da ideologia a ela relacionada. “A liberdade é sempre negra, mas ainda mas negra é a liberdade do sexo”, retruca Giacobbe. É um dos ‘leitmotivs’ do cineasta. Tem muito a ver com o que foi dito antes, no conteúdo esdrúxulo da entrevista supramencionada.
No contexto histórico em que o filme foi realizado, diversas questões explosivas daquele momento foram inseridas na trama, como os libelos pró-Vietnã, por exemplo. Como preâmbulo para o abjeto pronunciamento de Olavo de Carvalho, Pedro Bial lamentou a reiteração de um maniqueísmo político que arremeda de maneira quase infantil os desmantelos da Guerra Fria, que dividiu radical e inapropriadamente o mundo entre capitalistas e socialistas no período que vai de 1947 a 1991. O jornalista frisou que, hoje em dia, não fazem sentido as oposições absolutas, pois deparamo-nos com imbricações, justaposições ideológicas: “ao invés de um ‘isso’ ou ‘aquilo’, temos um ‘isso’ e ‘aquilo’”. Cada espectador, entretanto, ouve e repete apenas o que lhe convém. No desfecho do filme, ao tergiversar sobre os planos para o futuro, os personagens duplicados respondem, diante de quaisquer proposições: “não sei, veremos com o tempo…”. De nossa parte, o desespero é imediato: que haja tempo ainda!



