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Reflexão (auto)crítica – ou por que precisamos falar sobre a Netflix, mas não somente sobre a Netflix!

Reflexão (auto)crítica – ou por que precisamos falar sobre a Netflix, mas não somente sobre a Netflix!

Recentemente – mais precisamente, no dia 13 de fevereiro de 2019 – estreou na plataforma digital Netflix o filme “Megarrromântico” (2019), dirigido pelo cineasta especializado em comédias sardônicas Todd Strauss-Schulson e protagonizado pela atriz Rebel Wilson, especializada em papéis que zombam de seu próprio comportamento desengonçado. Na trama, ela interpreta uma arquiteta um tanto amarga, que abomina comédias românticas, depois de ter sido repreendida por sua mãe, quando, ainda criança, emocionou-se diante de “Uma Linda Mulher” (1990, de Garry Marshall). Cromicamente solteira, ela não é devidamente respeitada no trabalho e interage muito bem com dois colegas de profissão. Exceto quando o assunto em pauta são as suas preferências fílmicas…

Não obstante nutrir ojeriza por um dos mais bem-sucedidos subgêneros hollywoodianos, ela conhece muitíssimo bem todas as convenções que definem as comédias românticas enquanto tais. Depois que sofre um acidente durante uma tentativa de assalto no metrô, ela fica inconsciente e desperta num universo edulcorado, em que tudo apresenta-se florido e conveniente, não obstante enfrentar uma inaudita competição de mau humor com a sua até então melhor amiga e estranhar as hipertrofias afetadas de seu vizinho homossexual. Logo perceberá que, para que possa sair deste universo enfeitado e regressar ao seu ambiente normal, precisará fazer com que alguém declare sentir amor verdadeiro por ela. E, para atingir tal objetivo, ela precisará cumprir à risca todos os clichês narrativos que alegava odiar…

Não é necessário assistir ao filme para sabermos como ele terminará e/ou será conduzido enredisticamente: ao promulgar uma rejeição chistosa da suposta falta de criatividade dos roteiros mais tradicionais do cinema estadunidense, esta peça fílmica obedece-os rigorosamente, obtendo um sucesso arrebatador e imediato, ainda que o filme não tenha sido programado para estrear nas salas de cinema. Surgindo como oferta exclusiva para ‘streaming’ (ou seja, audiência a partir da descarga de dados cibernéticos), “Megarrromântico” logo tornou-se uma das mais comentadas estréias da semana, viralizando noticiosamente entre as mídias sociais e tornando-se assunto freqüente entre casais de namorados em que um dos vértices alega justamente odiar as comédias românticas. Ao fingir um desagrado, o filme o inocula e o reproduz, de maneira bem-sucedida. É assim que, infelizmente, muitos dos filmes produzidos sob a égide da Netflix funcionam…

Beneficiando-se de uma anistoricidade tão sustentacular quanto abundante, esse tipo de sucesso espontâneo arregimenta a crise dos grandes estúdios, a decadência das superproduções, a banalização das narrativas e a inocuidade da certa crítica contemporânea. Qual o problema de se levar a cabo, mui competentemente, as convenções de gênero? Ao não responder a esta questão e, ao invés disso, interditar a mesma via cinismo assimilador, as divulgadas super-estréias da Netflix seguem fomentando polêmicas enviesadas, que retiram o foco do que efetivamente deveria ser o ponto nodal de análise fílmica: a concomitância entre forma e conteúdo enquanto algo expressivo, artístico e sociologicamente válido.

Tomemos como exemplo reverso uma (não tão típica) típica comédia romântica de Hollywood, protagonizada por Audrey Hepburn e Albert Finney: em “Um Caminho para Dois” (1967, de Staney Donen) eles interpretam um casal em crise, que rememora os mais de dez anos de convivência, ao longo de quase duas horas de projeção e embalados pela maravilhosa trilha musical do mestre Henry Mancini. Servindo-se de situações comuns a quase qualquer casal, este filme consegue tornar-se vanguardista em sua abordagem expositiva ao embaralhar as memórias e tempos de apresentação de conflitos, através de uma montagem esplêndida, que não permite que seja esquecido que o interesse maior do filme é precisamente a resolução dos problemas do casal. Torcemos enfaticamente para que eles continuem juntos ao final, reforçando o final feliz obrigatório em qualquer comédia romântica. Anos se passaram, e o filme permanece um clássico, tão inédito hoje como na época de seu lançamento. Conseguirá “Megarrromântico” um feito semelhante?

Para além do exercício vão de futurologia apreciativa esboçado no parágrafo anterior, o que está em pauta neste texto um tanto circunloquial é a necessidade de situar devidamente as produções apreciadas num contexto de lançamento efusivo com a tradição genérica anterior que se pretende transgredir ou referendar. O problema é quando a obra (ou talvez a sua lógica produtiva) engana o espectador ao fingir um dos intentos para atingir avassaladoramente o seu extremo oposto. Não se quer dizer que filmes como “Megarrromântico” não devam ser vistos e elogiados. Extremamente pelo contrário, aliás: vejam-nos, o quanto antes. Mas há muito mais em suas entrelinhas discursivas do que um mero pantim (des)apreciativo. Quem não dispensa a diacronia na análise de uma obra, que assuma a responsabilidade. Noutras palavras: sim, este é um texto auto-autocrítico!

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