Em 2010, a cineasta paulistana Tata Amaral dirigiu o curta-metragem “Carnaval dos Deuses”, como parte de um projeto coletivo internacional sobre compreensão de diferenças identitárias. No enredo, uma garota evangélica relutava em participar do baile carnavalesco de sua escola, pois seus pais inculcaram-lhe que esta festividade seria pecaminosa. Ela é cortejada por um garotinho judeu, que tenta beijá-la, mas é advertido de que isso só pode ser feito após o casamento. Entre uma e outra situação, os demais coleguinhas de classe comentam sobre as crenças religiosas que os caracterizam, de uma maneira tão graciosa como somente as crianças sabem fazer. Ludicamente, a cineasta transmuta as percepções teológicas das crianças através do material utilizado para confeccionar as fantasias de carnaval. Um ponto de partida simples para uma reflexão bastante delicada…
Nascida em 1960, Márcia Lellis de Souza Amaral é uma das mais autorais cineastas brasileiras em atividade. Seu primeiro longa-metragem, “Um Céu de Estrelas” (1996), expõe o cotidiano de opressão relacional contra mulheres, através da estória de uma cabeleireira que, ao receber uma passagem para fazer um curso nos Estados Unidos, é aprisionada em casa pelo namorado violento, que não a deixa viajar. No contexto publicitariamente divulgado como “retomada do cinema brasileiro”, Tata Amaral ousadamente discutiu os fundamentos do feminicídio, quando a palavra ainda não era utilizada nos telejornais. O filme foi bastante elogiado pela crítica especializada, que, por sua vez, não deu a mesma atenção ao longa-metragem seguinte da diretora, “Através da Janela” (2000). O tema agora era a indulgência materna, através do flerte quase incestuoso na abordagem tramática de uma mãe extremamente devotada que não percebe as atividades criminais do filho. Interessante, porém bastante discreto em resolução.
Em 2006, Tata Amaral conduziu o seu maior sucesso de bilheteria até o momento: o musical “Antônia – O Filme”, sobre o cotidiano de um quarteto de mulheres faveladas que resolvem driblar o machismo do universo ‘hip-hop’. O filme foi tão bem-sucedido em sua proposta que tornou-se seriado de TV. A delicadeza nas abordagens roteirísticas da diretora é contrabalançada por sua firmeza na realização: ela sabe como escolher seus temas e realiza um verdadeiro “cinema de contrabando”, no sentido de que, ao obedecer às restrições produtivas e às convenções dos tradicionais gêneros cinematográficos, milita sutilmente em prol da visibilidade feminina, contra as desigualdades de gênero (no sentido sexual do termo). Trabalhou novamente na televisão (agora, na emissora Cultura) e, em 2013, converteu num pungente filme a série “Trago Comigo”. Em discussão, as aflições advindas da ditadura militar no Brasil, que também surgem de maneira provocativa no posterior “Hoje” (2011), quiçá o seu projeto menos sucedido. Até que, em 2018, realiza “Seqüestro Relâmpago” – e é sobre este filme que passaremos a falar a partir de agora…
Baseado numa situação real, dentre tantas que ocorrem similar e diuturnamente no País, “Seqüestro Relâmpago” acompanha o drama de uma moçoila aparentemente rica (Marina Ruy Barbosa), que é assaltada por dois inexperientes bandidos (Sidney Santiago e Daniel Rocha), um negro e outro branco, ambos bastante desfavorecidos socialmente. Era para ser um roubo fácil, mas eles a abordam perto da hora de fechamento dos caixas eletrônicos. Impedidos de sacar o dinheiro que ela possui depositado em sua conta, decidem aprisioná-la até o horário de abertura das agências bancárias, na manhã seguinte. O que se segue é uma tentativa de convívio forçado, que torna-se uma metralhadora giratória de discursos sobre a flexibilização negativa dos privilégios gozados por algumas pessoas: a moça, Isabel, é privilegiada por ser rica e branca, mas desprivilegiada por ser mulher. Numa cena bastante contundente, ela pede socorro a um segurança de farmácia, mas este ignora o seu clamor por pensar tratar-se apenas de uma patricinha bêbada. A vítima é culpabilizada por ser mulher, portanto.
Tata Amaral, entretanto, não opta pelas soluções fáceis: em contato forçado com os bandidos, Isabel constatará (e será balizada por) uma ciranda de preconceitos reversos, como quando insiste em declarar-se “igual” aos assaltantes, em termos de falta de oportunidades na vida, ou ao demonstrar que domina o mesmo cabedal cultural de seus algozes, conhecendo as mesmas letras de ‘rap’ que eles e jogando bilhar bem mais habilmente que os mesmos. Num momento de desespero, ela flerta com o freqüentador de um bar numa boca-de-fumo, no afã por fugir, mas é agredida por sua namorada transexual (vivida pela cantora Linn da Quebrada). Empunha uma arma para se defender. Mas é novamente traída por sua condição “privilegiada”. No desfecho, um anticlímax: não tem como dar um fim devido a esta situação. É um filme que urge para ser visto e debatido!
Tendo estreado no circuito comercial brasileiro em novembro de 2018, “Seqüestro Relâmpago” foi muito pouco visto, infelizmente. Beneficiou-se de nova sorte ao ser exibido na TV por assinatura, mas, ainda assim, permanece restrito a um público distinto da generalidade ao qual se direciona. Não por acaso, este é um problema que aflige toda a filmografia de Tata Amaral e a de várias outras cineastas de renome. É uma chaga a afligir quase todo o cinema brasileiro, na verdade: a invisibilidade denunciada como financiadora suplementar de inúmeros crimes é convertida em obnubilação espectatorial. É o que ocorre com o tratamento intervencionista que deveria ser direcionado contra a violência feminina, bastante abundante em nosso cotidiano, mas que permanece equivocadamente julgada por arremedos moralistas que transformam em causas o que deveriam ser conseqüências. Os seqüestrados, afinal, somos todos nós!