Na manhã de 21 de abril de 2025, feriado no Brasil, a quase totalidade das emissoras noticiava o falecimento do religioso argentino Jorge Mario Bergoglio [1936–2025], mundialmente conhecido como Papa Francisco. Ostensivamente odiado pelos bolsonaristas e demais simpatizantes da extrema-direita política, sua morte era desejada por falsos cristãos há muito tempo, pois ele era tachado de “comunista” por aqueles que desassociam tal adjetivo dos procedimentos bíblicos. Numa determinada emissora evangélica, ao invés de ser transmitida a notícia em pauta, falava-se sobre os benefícios da harmonização de mãos. Na noite do mesmo dia, faleceu o crítico de cinema Ivan Macedo Valença [1944–2025], pioneiro do jornalismo em Sergipe. Há alguns anos, ele sofria do Mal de Alzheimer, em âmbitos literal e figurativo: a despeito de sua extrema importância no desenvolvimento da cinefilia no menor Estado do Brasil, envolveu-se em infames polêmicas, nos derradeiros anos de sua atividade profissional. Alguém adivinha o que engendrou a sua decadência discursiva?
Existe uma anedota que apregoa que, se fizermos noventa e nove coisas certas e apenas uma errada, seremos lembrados por esta última, muito mais que pelas outras. É uma generalização, obviamente, mas que, nos tempos de “cancelamento” da Internet, torna-se aplicada nalguns obituários: se, por um lado, a morte não santifica ninguém (os feitos em vida é que permitem que isto ocorra, se for o caso), por outro, temos a opção e a responsabilidade de destacar o que de positivo qualquer ser humano legou ao mundo. É uma proposição humanista que beira a utopia, na lógica contemporânea, mas que não é de todo impraticável: o Papa Francisco fez muito pelo restabelecimento da tolerância na Igreja Católica, no que tange à abordagem das questões referentes à sexualidade humana; Ivan Valença, com a sua videolocadora sortida de títulos clássicos, ajudou muitos amantes da Sétima Arte a assistirem a filmes imprescindíveis. Que ambos sejam lembrados pelo que fizeram de melhor, portanto.
Partindo desta perspectiva redentora, convém lançarmos novas luzes a obras que, num momento inicial, foram incompreendidas e sumamente rejeitadas. Um exemplo oportuno é a (aparente) comédia estadunidense “O Telefone” (1988), único longa-metragem cinematográfico dirigido pelo ator Rip Torn [1931–2019]. Lançado em janeiro de 1988, este filme foi um fracasso de bilheteria e recebeu péssimas e unânimes críticas, mas, sendo descoberto hoje em dia, quando os telefones celulares praticamente se converteram em extensões inorgânicas de seus usuários, demonstra-se sobremaneira advertente. Além de, claro, chamar a atenção para o extremo talento de Whoopi Goldberg, então insuficientemente reconhecido, em termos dramatúrgicos.
Em cerca de uma hora e meia de duração, a atriz — que interpreta justamente uma atriz desempregada — grita com os vizinhos, conversa com a sua coruja de estimação, banha-se com um peixe de aquário, em sua banheira, e fala compulsivamente ao telefone. Logo no início, ela assiste a uma fita cassete do filme “Natal em Julho” (1940, de Preston Sturges), alegando erroneamente que esta obra seria dirigida por Frank Capra [1897–1991]. Impaciente, ela avança a reprodução do filme e reclama que não consegue encontrar uma determinada seqüência. Ensandecida, liga para a videolocadora, a fim de demonstrar a sua irritação e, ciente de que constatou uma fraude, ameaça fazer uma denúncia à polícia. Durante as respectivas conversas, ela não consegue controlar a sua verborragia, de modo que as piadas embutidas em suas reclamações dão a aparência de trote aos telefonemas, o que se confirma quando, logo em seguida, ela liga para uma loja de conveniências e imita um indiano lúbrico, ao tentar encomendar um pacote de cigarros. É quando o espectador se pergunta: é realmente engraçado o que estamos vendo?
Este questionamento se torna cada vez mais sintomático, à medida que o filme avança, e os comportamentos histriônicos da atriz denunciam que a sua solidão crônica pode ter desencadeado uma mazela psiquiátrica. Em determinado momento, por exemplo, o funcionário de uma companhia telefônica (interpretado por John Heard) aparece para desativar o aparelho, e ela suplica que ele não faça isso, pois ela alega depender do telefone para tudo — o que, pelo que vimos anteriormente, é verdade, já que ela faz ligações até mesmo quando está no banheiro. Não incorremos nos mesmos comportamentos, em nossa vida pessoal? A fim de não estragar a reviravolta dramática que acontece no terço final, após uma divertidíssima cena ao som da canção “One Love (People Get Ready)”, de Bob Marley & the Wailers, evitamos comentar o que acontece no roteiro do filme, escrito pelo músico Harry Nilsson e pelo dramaturgo Terry Southern. Mas insistimos que há algo válido nesta obra, naquilo que ela antecipa quanto ao que ocorre hoje em dia, de maneira ainda mais intensificada. É a nossa dica da semana, portanto. Junto a um conselho piegas porém sincero: por piores que pareçam algumas pessoas, tentemos encontrar algo de positivo para falar sobre elas. Afinal, chegará o momento em que todos nós seremos “cancelados”, por algo de errado que porventura façamos. Convém agirmos em relação a outrem do modo que desejamos que ajam conosco, não é? Eis um ensinamento basilar do cristianismo, que não depende de religião para ser transmitido e posto em prática!
Wesley Pereira de Castro.
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