Os conceitos de descentralização e autonomia, no sentido jurídico e constitucional, têm vindo a ser usados com grande frequência, mas nem sempre utilizados com a precisão e a devida correção. O que assistimos é a ausência da devida precisão terminológica, muitas das vezes confundindo uma dimensão por outra, ou ao invés assumindo para uma realidade contornos e substância valorativa pertencente à outra.
Quedemo-nos pela autonomia. Ora, porque se torna por vezes arbitrária a forma como se utiliza a designação de autonomia, nunca será demais recordar, que num plano conceptual (mas também, por vezes, até prático), o conceito de autonomia assume 2 dimensões fundamentais, que importa discernir. A primeira, enquanto o conjunto de atribuições e competências que são dadas (convém não confundir as asserções, que estas duas realidades podem ter, consoante o prisma que as observe, seja à luz, por exemplo, do Direito Constitucional ou do Direito Administrativo, onde estas assumem dimensões próprias e diferentes), por uma entidade jurídica com poder fundacional próprio, que por meio de descentralização ou desconcentração (também, aqui, estas “figuras” têm gradações e variações consoante o grau) atribui a outra poderes, que originariamente são seus; a segunda avulta como as práticas, que os “atores” das organizações no terreno vão desenvolvendo dentro do quadro legal existente (que muitas vezes funciona, no entanto, como um “espartilho”), ampliando-o, restringindo-o, ou, em todo o mais, ganhando mais competências e atribuições.
A outro nível, entre nós, na atual Constituição da República de 1976(CRP), a autonomia surge perspetivada sobre duas formas. Num caso, como reconhecimento de poderes originários das Regiões Autónomas, fruto daquilo que o texto constitucional refere de: “históricas aspirações autonomistas” das populações insulares e dos Municípios (promovendo-se aqui, para estes, uma efetiva devolução de poderes, que entretanto lhes haviam sido subtraídos pelo Estado Liberal); e, num segundo caso, como delegação de poderes do Estado às entidades intraestatais (pessoas coletivas) da administração pública.
Naquilo, que aqui nos poderá relevar, pois, em ambos os casos, estamos perante realidades compreensivelmente de intensidade axiológica diferente e com contornos jurídicos próprios e dissemelhantes. Compreender a suas diferenças e não confundir os planos de análise será relevante evitando as arbitrariedades. De facto, ao Estado, queda cometida a reserva de representação e salvaguarda do interesse público geral e da unidade de ação deste mesmo Estado.
Em termos de dimensão e âmbito, a autonomia das Regiões Autónomas (as Regiões Administrativas no continente ainda não foram criadas, apesar de induzida a sua previsão no texto constitucional -artigo 236.º, nºs 1 e 2, da CRP[1]) e dos Municípios é diferente e mais ampla do que as pessoas coletivas e entidades e serviços da administração pública do Estado. A das Regiões Autónomas é legislativa, política, administrativa, financeira e patrimonial, abrangendo mesmo todas as áreas de intervenção social do Estado no território das Regiões (exceto as áreas de soberania: defesa, justiça e política monetária) e tendo completa autonomia em termos de condução organizacional; a dos Municípios é política, administrativa, financeira, e patrimonial, abrangendo intervenções em vastas áreas sociais do Estado e detendo também completa autonomia em termos da sua condução organizacional.
Esta descrição, que antes se tentou ensaiar, acabará contribuir para a caracterização, grosso modo, do Estado Português, apesar de este reconhecer as autonomias, como Unitário. Mais ainda, serão estes os limites constitucionais à Autonomia, que permitem considerar a administração pública como instrumento de execução das políticas nacionais, ao que se deverá aditar na Madeira, e nos Açores, as políticas regionais, e autárquicas no caso Municípios.
Apesar, de optar por abordagens diferentes as definições de políticas públicas devem revestir, em geral, uma visão holística, uma perspetiva sistémica de que o todo é mais importante do que a soma das partes e que indivíduos, instituições, interações, ideologia e interesses contam, mesmo que existam diferenças sobre a importância relativa destes fatores. Consequentemente, a sua implementação é um processo dinâmico e não linear e deve acontecer na fase do processo em que as decisões de política pública se traduzem em ações. Analisar assim, o contexto em que se está implementando uma política é pois, crucial para sua eficácia.
Embora diversos fatores contextuais relevem, existem quatro dimensões reconhecidamente relevantes: o grau de estabilidade política; o ambiente político e económico externo, aabertura do processo a novos atores (na ótica em que processo das políticas públicas é sempre influenciado pelo que não deve ser definido com base em tomadas de decisão estreita e que exclua); e, claro, o grau de descentralização, tendo presente a mobilização de todos os níveis de administração.
Num plano, agora mais político/sociológico, e onde pragmaticamente se tenta por em ação o anterior enquadramento, assiste-se atualmente à desagregação do Estado moderno e à reorganização de velhas e novas capacidades (desse mesmo Estado), que tem conduzido a tensões e contradições, por vezes não referenciáveis, naquilo que é o serviço público.
As razões mais relevantes, entre certamente outras, dependem da forte pressão exercida pelas organizações mundiais. O aumento do impacto estratégico internacional. A massificação nos acessos à escola pública. A afirmação em crescendo da chamada “sociedade civil” echoque entre os interesses e grupos sociais, que se definem tanto a partir de premissas neoliberais como dos protestos e propostas de novos movimentos sociais.
Perante este diagnóstico do Estado na atualidade, e perante o cenário em crescendo em que este se encontra envolto e aberto a todos os favorecimentos da liberalização e da privatização. Este mesmo Estado, enquanto pessoa coletiva pública, torna-se então um campo político multicolor. Ademais, aquelas que são as regras ligadas a diferentes formas de agir sucedem-se sem, no entanto, atingirem uma normalização. E, isto, vem provocando inevitavelmente, facto a que se vai assistindo, um real enfraquecimento das estruturas de poder tradicionais, com efeitos ao nível da orientação, coordenação econtrolo dos atores, conduzindo simultaneamente a um ambiente fomentador de toda uma rede de ideias pragmáticas e de padrões de comportamento cooperativo, partilhadas por políticas e ação públicas, muitas das vezes aproveitadas por movimentos efémeros e sem consistência, que se pautam, não raras as vezes, por populismos e/ou ideários sem conexão à realidade.
Concomitantemente, e de forma relevantíssima, volvidas cerca de três décadas e meia de integração na União Europeia, o processo de europeização tem vindo a traduzir-se também, como contributo para a construção de um referencial global europeu, mediante um complexo particular de finalidades estratégicas que, cada vez mais, têm vindo a impor-se como base paradigmática para o enquadramento dos atores, das organizações e da regulação das suas interações.
No plano geral de análise, e quaisquer que sejam as razões invocadas, esta realidade em primeiro lugar de política, e de políticas públicas, parece caracterizar-se pela crise do Estado-nação, que cada vez mais perde poder efetivo como organizador das relações políticas internas e pela existência de novos espaços de relação política e de regulação.
O Estado-nação, de resto, nas novas condições, que acaba integrado assim em espaços mais gerais, o que nalguns casos conduz à afirmação política de autonomias regionais, numa Europa comunitária.
Verifica-se ainda, que associado a este efeito de “quebra”, se junta também um processo de fragmentação das próprias sociedades, que suportam o Estado, e que leva ao aparecimento do regionalismo. Acresce mesmo, a constatação no próprio Estado, da existência de modelos de sociedade diferentes, com diferentes processos de desenvolvimento e diferentes contextos estratégicos. É, aliás, nesta “conceção” de Estado, que a formulação de políticas e a governação poderão ser melhoradas através da racionalização, da clarificação de objetivos, da redução do número de participantes na fase da implementação, de uma melhor informação a respeito das intenções subjacentes às políticas e de uma maior monitorização e controlo das atividades desencadeadas.
A finalizar, o abandono da conceção central de governação, enquanto função assegurada exclusivamente pelo Estado, em favor de uma atividade de coordenação da vida social garantida por outras entidades, de forma descentralizada e até autónoma, acaba assim por cada vez mais ser uma evidência. Aqui, uma lógica de crescimento para acompanhar aquilo que o Estado concebe; e, depois, uma filosofia de inovação e desenvolvimento, para adaptar (não através de mera cópia!), este “sistema estatal” à realidade social e às especificidades regionais poderá ser, quiçá, assim o defendemos, um caminho a trilhar numa Região com autonomia, política, legislativa e administrativa como a Madeira.
[1]Em rigor, deve mencionar-se, que apesar de inscritos nos princípios constitucionais de 1976, nunca as Regiões Administrativas chegaram a ver cumpridos os desígnios para as quais se previa a sua criação. Isto, apesar de terem sido apresentadas e discutidas várias iniciativas legislativas em sucessivas legislaturas. Deve mesmo dizer-se que a Assembleia da República aprovou em 1991 e em 1998, respetivamente, a Lei-Quadro e a Lei de Criação das Regiões Administrativas, mas que o resultado do Referendo de 1998, sobre regionalização do país (2/3 contra, com mais 50% de abstenção), fez parar inapelavelmente este processo.