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“Tu só me encontraste porque ontem choveu”…: que tal mais um exercício crítico, envolvendo a audiência imediata a um filme pouco conhecido?

“Tu só me encontraste porque ontem choveu”…: que tal mais um exercício crítico, envolvendo a audiência imediata a um filme pouco conhecido?

Apesar de ser descrito pelo pesquisador cinematográfico Jean Tulard, em seu “Dicionário de Diretores”, de maneira assaz elogiosa, o cineasta norte-americano Russell Rouse [1916–1987] não é devidamente reconhecido pelos cinéfilos contemporâneos. Responsável por uma dezena de longas-metragens, foi dito sobre ele, pelo autor citado: “as obras que ele assinou como realizador destacam-se pela inteligência e pela sua singularidade assumida. (…) Tudo é curioso e inesperado em Rouse”. No verbete dedicado a este cineasta por outro pesquisador que elaborou um dicionário de cineastas, Jean-Loup Passek, lemos que os seus trabalhos são marcados por paradoxos, havendo ao menos uma produção demarcada pelo estilo clássico, o faroeste “Gatilho Relâmpago” (1956), que, segundo o autor, demonstrou que “ele estava errado ao se obstinar pela bizarrice”. É sobre este filme que falaremos a partir de agora…

Não há nenhuma ocasião especial para justificar esta homenagem: ao sintonizar-se a TV na programação do canal TCM, e deparar-se com a exibição do filme em questão, percebe-se, imediatamente, que ele é merecedor de pauta analítica: uma obra que, na tradição dos melhores faroestes reflexivos, traz novidades na apresentação dos dilemas individuais de um personagem, em contraste com os segredos que fundamentam uma sociedade em desenvolvimento. Espelhando algo que já víramos em “O Matador” (1950, de Henry King) e “Matar ou Morrer” (1952, de Fred Zinnemann), além de inspirar “Os Imperdoáveis” (1992, de Clint Eastwood), o roteiro deste filme valida os elogios dos pesquisadores supracitados. E merece ser descoberto pelas novas gerações.

Originalmente nomeado “The Fastest Gun Alive” [“A arma mais rápida do mundo” – rebatizado “A Vida ou a Morte” em Portugal], “Gatilho Relâmpago” surpreende pela maneira com que desenvolve a sua trama, afinal elementar: logo no começo, o personagem Vinnie Harold (Broderick Crawford, brilhantemente odioso) busca o xerife de uma cidadezinha, que, ao aparecer, não compreende o porquê de estar sendo procurado, já que não reconhece o seu opositor. Este afirma que soube de sua fama como o “pistoleiro mais rápido do Oeste”, e assassina o xerife de maneira impiedosa, o que logo se espalha, enquanto fofoca, até chegar à cidadela de Cross Creek, onde vive o nosso protagonista, George Kelby Jr. (Glenn Ford), que possui uma mercearia junto à sua esposa grávida Dora (Jeanne Crain). Ele dedica várias horas de seu dia ao treinamento de tiros, mas nunca é visto portando um revólver ou bebendo em público. Em breve, descobriremos as razões por detrás desta decisão, que causa estranhamento entre os cavalheiros locais.

Ciente de que, se as suas proezas enquanto atirador fossem divulgadas, ele seria perseguido por pessoas tão vilanazes quanto Vinnie Harold — que, para piorar, é um assaltante de bancos —, George mantém uma vida pacata como vendedor numa cidade pequena, mas Dora pressente que há algo de errado em seu comportamento: ele jurara-lhe nunca mais voltar a se embebedar ou empunhar uma arma, mas age como se estivesse à mercê de uma mal-resolvida crise de consciência, relacionada aos feitos de seu pai, que fôra um conhecido xerife na cidade onde ele cresceu. Oportunamente, Russell Rouse é, ele próprio, filho de um diretor pioneiro do cinema mudo, o que levou alguns exegetas a especularem acerca de elementos autobiográficos neste roteiro, co-escrito pelo diretor, em parceria com o autor da peça teatral “The Last Notch” [“O Último Entalhe”], o dramaturgo Frank D. Gilroy [1925–2015]. Tudo isto referenda a tese de que traços sumamente autorais podem ser encontrados em obras produzidas sob a serialidade dos estúdios hollywoodianos, que não hesita em inserir um exótico número de dança, envolvendo acrobacias com pás, protagonizado pelo exímio Russ Tamblyn, num faroeste. Estamos ao lado da ‘politique des auteurs’, portanto!

Pesquisando sobre os demais filmes deste diretor, descobrimos que as temáticas existenciais reaparecem, de maneira intensificada, noutros enredos, seja através da ousada decisão de rodar um longa-metragem sonoro sem diálogos [“O Ladrão Silencioso” (1952)], seja explicitando as ambiciosas manobras de um protagonista, no afã por conseguir um Oscar [“Confidências de Hollywood” (1966)], passando pela superação do tropo relacionado a irmãos gêmeos [“A Casa dos Homens Marcados” (1957)]. São filmes que, mesmo que ainda não vistos, revelam-se interessantíssimos e mui valiosos, tanto qualitativa quanto discursivamente. Conforme mencionado ‘en passant’, este texto adveio da descoberta casual do filme ora resenhado, cujo desfecho ocorre após uma longa deliberação entre os moradores de Cross Creek, que estavam reunidos numa igreja, cenário-chave das sociedades edificadas em faroestes. O exercício crítico posto em curso, nesta coluna — escrever sobre um filme acerca do qual não se sabia nada, antes da sessão, e que foi visto de maneira absolutamente corriqueira, graças à programação de um canal fechado de TV —, é compartilhado mediante a crença num jornalismo de mútua transformação, que, ao versar sobre determinado assunto, também contribui para a melhoria intelectual e emotiva de seu articulista. De minha parte, agradeço pela oportunidade de ser lido: espero que estas recomendações sejam efetivamente contributivas!

Wesley Pereira de Castro.


Fonte da imagem disponível em: https://mattmulcahey.wordpress.com/wp-content/uploads/2012/01/the-fastest-gun-alive-frame-00467.jpg

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