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Traços de imunidade brasileira diante da lusofonia

Traços de imunidade brasileira diante da lusofonia

Em nossa investigação sobre a invisibilização construída no Brasil da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), identificamos que os dois maiores jornais brasileiros (Folha de S.Paulo e O Globo) formataram dois modos entrelaçados para tentar apagar a possibilidade de associação identitária do Brasil com a comunidade lusófona.

O primeiro aspecto é o das forças immunitas, na concepção apresentada por Esposito (2012), isto é, de uma isenção, no sentido de sentir-se imunizado, desobrigado, dispensado, desonerado, eximido. O segundo é a marca de nossa herança colonial, ou de colonialidade, de acordo com pensamento de Quijano (2009).  No texto de hoje, vamos tratar exclusivamente do primeiro aspecto, a imunidade.

Ao convocar aqui a ideia de “imagem”, estamos dizendo de uma imagem como um imaginário assentado em fundamentos históricos, de uma história oficializada e de seus modos de apagamentos e de manipulações, mantendo-se entre nós as colonialidades. Essa imagem assegura um percurso immunitas, que é o do não reconhecimento do Outro e, assim, de completa desobrigação para com Ele, nesse caso, a comunidade lusófona, que o Brasil é parte. 

O imaginário proposto de imunidade e de colonialidade não é, como afirma Abril (2013), a soma dos objetos que foram representados, mas algo que somos levados a construir em razão de nossas interações e das tensões, entre as ausências presentes e as presenças ausentes. Nesse campo, os exemplos são apenas indicativos, traços, indícios dessas relações, e não estão presos na totalidade das expressões concretas que vemos. Eles nos impelem a outras conexões semióticas, uma materialidade não plenamente visível.

Sobre a imunidade, relembremos que, ao contrário de communitas, a condição de immunitas representa toda ação que se expressa no não compromisso, na não responsabilidade, no sentir-se completamente isento, sem qualquer possibilidade de vínculo com o Outro e, muito menos, sem quaisquer dívidas para com Ele.

Na investigação que realizamos nos arquivos de 20 anos dos jornais Folha de S. Paulo e O Globo para saber como o Brasil lidava com a CPLP, percebemos que nessas duas décadas (1996-2016) foi pavimentada uma proposta de experiência jornalística para levar os leitores desses jornais a não se reconhecerem como membros da comunidade lusófona e sequer saberem o que significa lusofonia. Isso se deu desde a ausência mais básica informação, por exemplo, de que existe essa comunidade, até as nítidas manifestações de rejeição e combate à possibilidade de associação do Brasil com a CPLP.

Essa é uma ação política dos jornais e tem fundamentos identitários e históricos, e que passam de modo central pelo racismo e por uma defesa de classe social. Dessa forma, a condição immunitas não implica em uma indiferença como uma não-ação. A isenção aqui não é um “tanto faz”, apenas um descompromisso. O exercício de imunidade pedagogicamente trabalhado pelos dois jornais em 20 anos pressupõe uma forte ação do Nós, brasileiros, para que esse Outro, a comunidade pobre, negra e africana, ou seja, a diferença indesejada, não se aproxime de Nós.

Vejamos um exemplo: assim como O Globo, o jornal Folha de S. Paulo também acompanhou a conferência da CPLP em 2002, realizada em Brasília. Relembremos que em 2001 e 2002 o Brasil ocupava o cargo da Secretaria-Executiva dessa entidade. O registro da Folha sobre esse evento em 30 de julho de 2002 foi: “Comunidade portuguesa firma acordos”. A primeira impressão é que existiu uma conjunção de esforços dos países da CPLP e o resultado disso foi a celebração de inúmeros acordos entre eles. Em O Globo, o título da notícia em questão foi: “Acordo vai criar a cidadania lusófona”, na edição de 30 de julho de 2002. Cidadania lusófona seria um motivo de grande festa e júbilo.

Todavia, ao manusear o texto desse registro na Folha de S.Paulo, percebemos que os países debateram, superficialmente, o combate ao vírus da Aids. Outro assunto timidamente tocado foi o da mobilidade na CPLP. O jornal insiste que essa é uma comunidade em que entre seus membros existem “cinco países africanos entre os mais pobres do mundo”. Na disposição gráfica na página onde está essa notícia, destaca-se também um grande box (quadro) em que o jornal informa que o presidente Fernando Henrique negou dinheiro ao Timor-Leste, que participava da reunião da CPLP pela primeira vez como um país independente. Entretanto, grande parte da notícia é uma entrevista com a senhora Dulce Pereira, brasileira e então secretária executiva da CPLP.

O foco da entrevista foi a mobilidade. O jornal informa que seria aprovado um acordo em que a livre circulação dos povos dessa comunidade seria garantida. “A intenção é facilitar a circulação das pessoas”, diz o jornal. Entretanto, não foi isso. Na verdade, o que foi acordado na reunião da CPLP foi a redução de taxas e a implantação de visto de múltiplas entradas para “médicos, jornalistas, empresários e diplomatas”. O jornal – como ator político e moral – logo esclarece que não deve haver grande “imigração de africanos” para o Brasil porque “os limites impostos ao ingresso nos países da CPLP permanecerão praticamente inalterados” (Folha, 30/07/2002, p. 10). O detalhe importante: a notícia no jornal O Globo foi publicada na página policial.

Emergem nesses registros uma forte ação immunitas proposta pelos jornais diante da ideia de “livre circulação” nessa comunidade. O Brasil não aceita partilhar o espaço com o Outro, o estrangeiro indesejado, mesmo membros da mesma comunidade lusófona. Por essa lógica immunitas, não temos qualquer obrigação e compromisso com esse Outro. Essa é uma imunidade ativa, racista e classista porque o problema da “livre circulação”, da “cidadania lusófona” não é o português, o europeu branco, rico e desejado, mas o africano pobre e negro, que foi construído na história e no regime de (in)visibilização pelo jornalismo como ignorante, doente, criminoso, traficante, o perigo.

Essa imunidade é fortemente apresentada pelos dois jornais quando eles reduzem e transformam as falas do presidente Lula sobre a escravidão no Brasil e as dívidas históricas que temos para com África ao “tom emocional” dele (Folha, 03/11/2003, p. 4). Para o Brasil, a lembrança de Lula é afetiva e se perdeu no passado, não tem amparo no presente racional, político e econômico.

O que os jornais estão a ensinar é que o Brasil não tem qualquer responsabilidade e dívida e para com África, que não nos sentimos obrigados a nenhum tipo de reconhecimento e de reparação. Muito ao contrário, para a Folha de S. Paulo e O Globo, são os africanos quem devem aos brasileiros e vão pagar com a fidelidade e votos no Brasil para o Conselho de Segurança da ONU, com petróleo e eternos agradecimentos por pífios convênios na educação, saúde, agricultura.

Da mesma forma, experimentamos imunidade nas notícias dos conflitos nas nações da CPLP. Do Timor-Leste à Guiné-Bissau, os registros nos dois jornais propõem ausência e indiferença do Brasil. Mesmo sendo da mesma comunidade e convocados a agir, não cultivamos nenhuma obrigação, nenhum dever para com os demais membros lusófonos.

Como fissuras, encontramos algumas raras notícias em que essa condição immunitas foi muito mais revelada na superfície visível. Isso ocorreu em razão das entrevistas do ex-embaixador brasileiro José Aparecido, como uma forma de reação por ele não ter sido escolhido pelo Governo brasileiro para comandar a CPLP. De 1997 a 1999, Aparecido teve algum espaço em O Globo. Em 30 de novembro de 1997 (O País, p. 11), existe um pequeno registro em O Globo em que José Aparecido diz que os “governos de Brasil e Portugal desprezam a CPLP”.

Essa notícia teve como centro a demissão do secretário de Estado de Negócios Estrangeiros de Portugal, José Lamego, que tinha uma postura mais favorável à CPLP. No lugar de Lamego assumiu Jaime Gama, aliado do embaixador Filipe Lampreia (ministro de Relações Exteriores do Brasil). Os dois (Gama e Lampreia), segundo Aparecido, agiam contra a comunidade lusófona. O jornal informa que Lamego vinha enfrentando oposição dentro do Governo Português em razão de dar atenção “aos países africanos de língua portuguesa”. Ou seja, a aproximação com as nações africanas parece não ser somente indesejável no Brasil.

Também em O Globo, em 30 de janeiro de 1999 (O Mundo, p. 11), José Aparecido voltou a criticar o abandono da CPLP pelo governo brasileiro, o não apoio à independência do Timor-Leste e o não envolvimento com os pleitos dos países africanos.

É isso. Nesse texto tratamos do primeiro grande aspecto da relação entre Brasil e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa: a imunidade. Grande parte da produção dos dois maiores jornais brasileiros em duas décadas da CPLP leva aos brasileiros a não enxergar, portanto, não se reconhecer como membros da comunidade lusófona. Quando surgiu alguma notícia sobre ela, há uma construção narrativa para fosse desenvolvido um sentido de imunidade, de desobrigação, de isenção diante dos povos em lusofonias.

Essa condição immunitas está atrelada e fundamenta outro aspecto central, de bases histórico-identitárias, que é a colonialidade. É sobre ele que trataremos no próximo texto.

REFERÊNCIAS
Abril, Gonzalo. (2013). Cultura visual, de la semiótica a la política. Madrid: Plaza y Valdés.
Esposito, R. (2012). Communitas: origen y destino de la comunidad. Buenos Aires: Amorrortu.
Quijano, A. (2009). Colonialidade do poder e classificação social. In: Sousa Santos, Boaventura de; Meneses, Maria Paula. Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, p. 73-117.

Imagem de uso gratuito em Pixabay


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3 respostas

  1. O Brasil não estará imune.

    Do excelente texto de Cristian Góes, emerge a raiz do grande conflito brasileiro: O Brasil para quem? O Brasil brasileiro do Ary Barroso, onde o mulato, símbolo máximo do sincretismo racial, é dito mentiroso, falso, mexeriqueiro (inzoneiro) no termo que rima com brasileiro. O Brasil para quem? É o mesmo das lutas de classe, o mesmo das disputas eleitorais, em que a m…

    1. Obrigado pelas palavras Helder. Você percebeu muito bem a questão da imunidade da elite brasileira diante da comunidade lusófona. Na verdade, uma isenção contra o próprio povo brasileiro, porém, como você bem escreve, há uma impossibilidade histórica e identitária do Brasil está imune de si mesmo. Grande abraço e obrigado mais uma vez.

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