Como sói acontecer, as produções mais aguardadas da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – importantíssimo evento cinematográfico do Brasil – advêm de certames fílmicos sediados em Berlim, Locarno e Veneza, para ficar em alguns dos criticamente consagrados. Mas são os filmes premiados no Festival de Cannes que, por motivos óbvios, chamam prioritariamente a atenção do público. Na quadragésima quinta edição do evento, que ocorre entre os dias 21 de outubro e 03 de novembro de 2021, filas imaginárias eram formadas antes mesmo do anúncio das produções selecionadas…
Para a infelicidade dos cinéfilos que não vivem em São Paulo e/ou que ainda não têm coragem de comparecer às salas de cinema, malgrado as medidas governamentais de reabertura, os principais títulos serão exibidos apenas presencialmente, visto que os distribuidores não consentiram com a simultânea disponibilização virtual. Sendo assim, produções mui chamativas como “Annette” (2021, de Leos Carax), “Titane” (2021, de Julia Ducournau) e “Memória” (2021, de Apichatpong Weerasethakul), além das sessões físicas, serão disponibilizadas unicamente através da plataforma de ‘streaming’ Mubi, em datas posteriores ao evento.
Sobre o último desses filmes, convém acrescentar algumas considerações, visto que, de fato, a sua proposta extremamente sensorial requer um espaço de exibição adequado à total imersão do espectador. Se há uma produção cinematográfica que faz jus, hoje em dia, ao célebre ditado do filósofo Heráclito de Éfeso [540 a.C. – 470 a.C.], que prediz que “nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, pois, na segunda vez, o rio já não é o mesmo, nem tampouco o homem”, esta é, sem dúvida, “Memória”. Em tese, isso vale para qualquer situação artística, mas o despejo de genialidade que o diretor aplica neste filme valida tal menção hiperbólica: afinal, ele consegue dirigir até mesmo as nuvens!
Da mesma maneira que em suas produções anteriores, a sinopse pode ser resumida em poucas linhas, e periga não ser tão relevante, pois o que realmente interessa ao diretor é o mergulho que o espectador faz em seu universo, em que cada mínimo detalhe acústico possui extrema relevância – e, se os aspectos sonoros estão sendo exacerbadamente realçados nesse texto, é porque há um ponto de partida muito interessante a partir daí…
Filmado na Colômbia e protagonizado pela atriz inglesa Tilda Swinton, este longa-metragem possui características mui semelhantes aos trabalhos prévios do realizador, como se ele estivesse a converter as vegetações tropicais de continentes tão distintos (Ásia e América do Sul) em ambientes igualmente propulsores de sinestesia cosmopolita: aquilo que experimentamos nas florestas da Tailândia reverbera também nas “memórias de antes de nosso tempo” que descobrimos em Medelim. Mas não carece adivinhar nada, por enquanto: é necessário respeitar a condução mui específica do ritmo fílmico, que, no início, até finge destrinchar uma estória convencional…
Conforme já tínhamos percebido no material de divulgação do filme, sabemos que a protagonista Jessica é atormentada por um som tonitruante que a impede de dormir. Descrevendo este barulho como se fosse “uma bola metálica que bate no chão e ecoa como se estivesse cercado por ondas do mar”, Jessica faz amizade com o engenheiro de som Hernán (Juan Pablo Urrego), que esforça-se, utilizando seu arquivo particular de efeitos sonoros, para reproduzir aquilo que tanto aflige a estrangeira. Como ele possui uma banda ‘punk’, nomeada oportunamente Death of Delusional Ensemble [algo como ‘morte de um conjunto delirante’], fica interessado em âmbito pessoal pelas descobertas acústicas de Jessica. Mas há algo estranho no modo como ele se aproxima dela…
Segundo os parcos elementos que podemos coser através de breves diálogos, Jessica está em Bogotá porque sua irmã está internada num hospital, com uma doença não informada (aspecto recorrente nos filmes do diretor). Esta personagem trabalha com o cultivo de orquídeas, e muda-se para uma fazenda no interior, mas a reiteração persecutória do supracitado som interfere em seus projetos. Aparentemente, só ela ouve aquele ruído tão estridente. Do que se trata? Ainda falta muito a ser descoberto, como é esperado por quem já conhece o estilo do cineasta.
Vencedor do Prêmio do Júri no Festival Internacional de Cinema de Cannes deste ano – compartilhado com o israelense “Ahed’s Knee” (2021, de Nadav Lapid) –, “Memória” foi o título escolhido pela Colômbia para tentar um possível indicação à categoria de Filme Estrangeiro, no Oscar. Não obstante a protagonista ser britânica, quase todos os diálogos são falados em espanhol, ainda que o essencial esteja além das palavras. O desempenho irrepreensível do fotógrafo Sayombhu Mukdeeprom (colaborador habitual do cineasta) e de toda a equipe de som merece ser aplaudido de pé. Por mais clicheroso que pareça, é urgente repetir aqui, à guisa de apanágio, que o que ocorre na meia-hora final deste filme justifica a alcunha exagerada de “cinema puro”. É algo absolutamente embasbacador!
Voltando à Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – edição 45: para quem não puder comparecer às sessões presenciais, há cento e cinquenta e sete títulos diversos que serão disponibilizados através das plataformas digitais – alguns deles, gratuitamente. Aproveitamos este parágrafo final para deixar uma recomendação além dos tempos e espaços: se, nalgum momento, tu te deparares com uma exibição de “Memória” diante de ti, pare tudo o que estiver fazendo e mergulhe no filme, aceite ser a “antena” em que o diretor nos converte. O retorno cinemático-epifânico é mais que garantido, a ponto de, tal qual faz a protagonista, não ser mais necessário indagar quais substâncias teriam sido ingeridas por Salvador Dalí [1904-1989] ao pintar as suas impressionantes telas surrealistas. A realidade em si – não apenas enquanto matéria-prima – é “a melhor coisa já inventada pelo homem”!
Wesley Pereira de Castro.