Entre os dias 21 e 31 de agosto de 2025, ocorre, na capital do Estado de São Paulo, a trigésima sexta edição do Kinoforum, maior festival de curtas-metragens da América Latina. Idealizado pela produtora Zita Carvalhosa [1960–2025] e intensamente apoiado pelo crítico Jean-Claude Bernardet [1936–2025], que faleceram com poucos dias de diferença, este festival prestou a devida reverência a eles, na edição atual: Zita foi celebrada por seus amigos e familiares, na sessão de abertura, enquanto Jean-Claude far-se-á presente através de dois de seus recentes trabalhos como co-diretor, ambos em parceria com o realizador sergipano Fábio Rogério: “Homenagem a Kiarostami” (2025) e “Mensagem de Sergipe” (2025). Neste último, cujo projeto surgiu no aniversário de oitenta e oito anos do crítico, em 02 de agosto de 2024, ele declara que “não deseja muitos anos de vida”. Foi um comentário profético — mas não limitador!
Convivendo com o vírus da AIDS há alguns anos e padecendo de um câncer de próstata, Jean-Claude Bernardet, em seus derradeiros trabalhos documentais e autobiográficos, denunciou uma “máfia dos planos de saúde”, que reduz os indivíduos às suas doenças e a uma manutenção artificial da vida enquanto mercadoria. “Mensagem de Sergipe”, encerrando uma espécie de trilogia livre, composta por “Cama Vazia” (2023) e “A Última Valsa” (2024), supera uma recorrente pulsão de morte através da entrega à libido, num diálogo telefônico entre o personagem real e um interlocutor nordestino, que culmina numa ejaculação mútua, intencionalmente estendida aos espectadores. Nos créditos finais, a canção “Me Dê um Xêro”, do trio Lixinho Tropical, confirma os interesses carinhosos dos diretores, evidentes na feitura desta obra.
Na programação do Kinoforum. “Mensagem de Sergipe” foi incluído numa seção batizada “Ame e Dê Vexame”, que conta com a exibição de títulos organizados sob a égide do “impulso e outras aversões”. É uma dentre as várias seções especiais deste evento, que reúne alguns dos melhores curtas-metragens brasileiros e internacionais, recém-produzidos ou lançados, após a seleção de uma cuidadosa curadoria. Um dos filmes exibidos é a ótima produção alagoana “Entre Corpos” (2024, de Mayra Costa — mencionado entusiasticamente aqui), merecidamente premiada na vigésima oitava edição da Mostra Tiradentes, em Minas Gerais. É uma de nossas recomendações mais fervorosas!
Outro trabalho que se destaca na seleção deste ano é o mais recente curta-metragem do paulistano Lincoln Péricles (LK), cineasta deveras apreciado por Jean-Claude Bernardet, “Filme sem Querer” (2025), que, de maneira espontânea, aborda os sonhos de três jovens que passam a estudar técnicas audiovisuais, graças ao Instituto Levando Cinema, e realizam um filme sobre aquilo que desejam, sobre aquilo que aprenderam, sobre aquilo que são… Todos eles esperam conseguir uma residência melhor para as suas respectivas famílias e sentem orgulho das gírias características que eles falam. Para tal, têm esperança de serem contemplados por editais públicos, que financiem as suas histórias sobre vivências periféricas.
Num belíssimo e demorado plano, um crepúsculo é focalizado, enquanto os jovens conversam sobre a realização em curso. Noutro instante, eles brincam de dublar as entrevistas que gravaram, alegando rejeitar as narrativas tradicionais hollywoodianas e comentando, de maneira chistosa, uma disputa entre os personagens das séries animadas “Naruto” e “Dragon Ball Z”, que todos apreciam. No início do filme, os estudantes e futuros diretores sobem o morro, em direção ao lugar onde têm acesso às aulas, ao som de “Fique Viva”, de Brisa Flow; no desfecho, eles descem o mesmo percurso, ao som de “Pose de Malandro/ Me Querem Morto”, do artista cearense Mateus Fazeno Rock. Nenhuma destas escolhas musicais é casual: elas expandem os interesses daquilo que é convertido em militância prática nas obras. Inclusive, além dos três jovens protagonistas de “Filme Sem Querer”, outras pessoas aparecem nesta sequência final, atestando o sentimento de coletividade que eles apregoam, confirmando que foram efetivos naquilo em que acreditam, na construção de um objetivo comum para os moradores de comunidades infelizmente menosprezadas pelo poder público. Este não é o lançamento mais significativo de seu diretor, responsável pelo esplêndido “Filme de Aborto” (2016) e por obras que dizem a que veio no título — como “Ruim é Ter que Trabalhar” (2015) ou “Mutirão: o Filme” (2022) —, mas sintetiza bem a pujança de seus “trampos”, como ele próprio define as suas vigorosas produções, demonstrando o porquê de ele ser um dos mais interessantes diretores brasileiros contemporâneos. Fica a dica, portanto!
Wesley Pereira de Castro.
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