Vencedor do prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Cannes e de numerosas láureas internacionais, além de ser um favorito absoluto às categorias estrangeiras da temporada hollywoodiana de premiações, o longa-metragem japonês “Drive My Car” (2021, de Ryûsuke Hamaguchi) foi unanimemente mencionado nas listas de Melhores do Ano organizadas pelos críticos de cinema. Baseado em alguns contos amalgamados do escritor Haruki Murakami, este filme apresenta-nos aos dilemas de poucos personagens, ao longo de quase três horas de duração, enfocando nos encontros casuais e nas epifanias cotidianas, como parecer ser uma marca registrada no estilo do diretor…
No mesmo ano em que realizou este filme, Ryûsuke Hamaguchi recebeu o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cinema de Berlim por seu longa-metragem anterior, “Roda do Destino” (2021), subdivido em três episódios independentes, em que as coincidências relacionais também determinam o tom emocional. Para o diretor, as conseqüências dos encontros sexuais são bastante relevantes, de modo que, apesar de seus enredos se destacarem pela ternura, há também manifestações traumáticas em seu escopo.
No longa-metragem mais recente, nota-se uma fascinante sobreposição de camadas metalingüísticas, facilitadas pela definição do protagonista como um ator teatral: no início de “Drive My Car”, Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima) está num palco, encenando “Esperando Godot”, de Samuel Beckett. Percebemos de imediato que ele nutre uma predileção por peças estrangeiras e que possui uma relação de extrema cumplicidade com sua esposa Oto (Reika Kirishima), que escreve roteiros após o sexo: durante e após cada orgasmo, ela acrescenta elementos a uma estória que desenvolve, sobre uma garota que percebe que foi uma lampréia numa vida anterior e que invade a casa do garoto por quem é obcecada para masturbar-se em sua cama, numa invocação de algo que acontece noutro conto murakamiano.
Sobremaneira compenetrado em suas atividades profissionais, Kafuku mantém como hábito a audição de uma fita cassete gravada por sua esposa, através da qual repassa os diálogos da peça “Tio Vanya”, de Anton Tchekhov, enquanto dirige. Sabemos que ele e sua esposa lidam com a perda de uma filha, que faleceu aos quatro anos de idade e, aos poucos, vamos compreendendo outras nuanças do relacionamento matrimonial: a decsoberta de que Oto tem relações sexuais com outro(s) homem(ns), por exemplo. Como Kafuku lida com isso? Estamos ainda no prólogo!
Os créditos iniciais irrompem na tela após cerca de meia-hora de projeção. É quando novos personagens entram em cena, a fim de ressignificar os eventos a que tivemos acesso como introdução de recorrências especulares: em Hiroshima, dois anos após o falecimento de Oto, Kafuku organizará uma oficina de interpretação que culminará na encenação de “Tio Vanya”, com atores de variegados países. Durante as audições, ele envolver-se-á particularmente com Koji Takatsuki (Masaki Okada), que fôra amante de sua esposa, e com Lee Yoon-A (Park Yoo-Rim), uma sul-coreana que comunica-se através da linguagem de sinais. Apesar de conseguir ouvir, ela não fala, e isso adicionará um toque ainda mais dramático à encenação levada a cabo por Kafuku.
Malgrado a sua longa duração, o filme não possui um ritmo lento, mas compassado. Ao mesmo tempo em que testemunhamos os ensaios para a peça supracitada, outra pungente relação é costurada ao longo da narrativa, justificando o título do filme: como foi diagnosticado com glaucoma após um acidente automobilístico, Kafuku é obrigado a aceitar uma cláusula de seus contratadores, que exige que outra pessoa dirija para os membros da equipe. Kafuku reluta a princípio, pois acostumou-se a repetir as suas deixas teatrais enquanto está no trânsito, mas concorda em experimentar os serviços da jovem Misaki (Tôko Miura). Eles começarão a interagir dialogisticamente nalgum momento, e os motivos que a levaram a tornar-se uma motorista tão hábil desencadearão uma climática entrega actancial, onde o diretor suprime qualquer acompanhamento musical: as vozes dos atores são intensificadas no enfrentamento da tragicidade mútua, percebida como necessária. “Sobrevivemos para pensar em nossos mortos”, diz Kafuku, quiçá recitando uma das falas de seus alter-egos dramatúrgicos…
Conforme antecipado pela cena em que o protagonista flagra a sua esposa transando com outro homem, através de um espelho, diversas camadas emotivas são superpostas no jogo de reflexos proposto pelo intricado roteiro de Ryûsuke Hamaguchi e Takamasa Oe: quando pinga um colírio para seu glaucoma, ao voltar para casa, temos a impressão de que Kafuku está chorando, o que de fato pode estar acontecendo como pode ser uma exigência interpretativa. A metalinguagem é multiplicada durante as encenações, de modo que diversos conselhos tchekhovianos servem para os próprios atores, como quando eles concluem que “é preciso continuar trabalhando”. As imbricações entre Kafuku e o onipresente Tio Vanya são inúmeras, a ponto de ele rejeitar a possibilidade de voltar a interpretar esse personagem nos palcos. A realidade abrupta, entretanto, obriga os partícipes dos enredos hamaguchianos a lidarem com destinos quase anunciados. Ao final, aplaudimos!
O sobejo de elogios direcionado a este filme é fundamentado: a extrema maturidade do diretor ao lidar com tantos aspectos personalísticos inter-relacionados é insigne, o que confirma-se a partir de uma escolha mui acertada de elenco. Num breve epílogo, chama a atenção o modo como as máscaras são naturalizadas, em razão de o filme ter sido filmado durante a pandemia do CoronaVírus. Os diálogos e olhares são bastante sutis mas também pontuados por relances de impacto, como quando Misaki percebe que tem a mesma idade que a filha de Kafuku teria, se ainda estivesse viva. Um trabalho elegante sobre as constatações da idade adulta, dirigido por alguém que realizou dois filmaços num mesmo ano. Respondendo à pergunta do título: na opinião desse articulista, o melhor filme de 2021 foi justamente “Roda do Destino”, de Ryûsuke Hamaguchi.
Wesley Pereira de Castro.