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Adoecimento físico e psicológico no telemarketing: esgotamento induzido do precariado

Adoecimento físico e psicológico no telemarketing: esgotamento induzido do precariado

Amanda é estudante de Medicina Veterinária e, às vésperas de completar 30 anos de idade, conseguiu um emprego como atendente de telemarketing. Em sua Carteira Profissional, consta o registro empregatício de “representante de atendimento”, a fim de driblar as exigências sindicais quanto ao piso salarial exigido pela profissão.

Cria que, por trabalhar apenas 6 horas e 20 minutos por jornada diária, disporia de tempo para estudar e exercer a sua vocação formativa. Chegando em casa às três horas da madrugada, não conseguia acordar a tempo para as aulas. Reprovou e/ou foi obrigada a desistir de várias disciplinas. Precisou ser demitida para poder avançar em seu curso.

Segundo ela, a maior desvantagem desta profissão era “o impacto psicológico causado pelo abuso constante”. Dormia mal, alimentava-se mal, não tinha motivação para exercer as atividades diárias ou desenvolver uma vida social saudável entre amigos. Reclamava da cobrança excessiva de resultados e da falta de profissionalismo por parte de seus superiores hierárquicos. “Todos esses fatos levam a um cansaço físico e mental que não permite ao funcionário, mesmo fora do trabalho, dedicar-se com afinco a outras áreas de sua vida, como família e estudos”, acrescenta ela.

Viviane, por sua vez, não é universitária. Nunca teve tempo para dedicar-se a esse tipo de estudo, em razão de trabalhar há vários anos como atendente de telemarketing. Mãe de duas filhas, também cria que, por conta da pouca quantidade de horas trabalhadas, disporia de tempo livre para dedicar-se à sua família e profissionalizar-se enquanto cabeleireira especializada, para abrir um salão de beleza ao lado de sua residência, um sonho antigo. Desistiu de seus sonhos por causa do estresse empregatício. Não conseguia dormir adequadamente e, em razão disso, estava sempre frustrada e desanimada. Reclamava por estar psicologicamente abalada, e sabia os motivos: “nenhuma empresa tem acompanhamento psicológico para os funcionários. E a remuneração é abaixo do que deveria… Mediante tamanha responsabilidade com dados dos clientes e fator mental de risco”.

Pediu demissão. Voltou para
a cidade de São Paulo, onde vive com o marido e as filhas. Mas não desistiu da ideia de trabalhar novamente nesta área. Segundo ela, algumas vantagens ainda capacitam-no como um bom emprego. Afinal, além da carga horária reduzida, “há pouco esforço braçal. E você tem mais possibilidades de [aceitação de] erro contando que sempre poderá ter alguém pior que você desempenhando a mesma função”. Está buscando um novo emprego, atualmente.

Ambas as trajetórias refletem apenas dois pontos de vista bastante esclarecidos acerca da categorização da profissão de atendente de telemarketing enquanto membros do precariado, neologismo sociológico que advém da expressão “proletarizado precarizado”. No Brasil, os principais pesquisadores sobre esta área da Sociologia do Trabalho são Giovanni Alves e Ruy Braga, sendo definida como “a camada média do proletariado urbano constituída por jovens-adultos altamente escolarizados com inserção precária nas relações de trabalho e vida social”. Ou seja, o não aproveitamento das habilidades educacionais dos trabalhadores destaca-se enquanto elemento de exploração e desprestígio.

Geralmente, a função de atendente de telemarketing é exercida por estudantes recém-saídos do Ensino Médio, que não dispõem de muitas opções de profissionalização até que ingressem, a contento, no curso universitário desejado. O efeito negativo é que, ao optarem por um emprego que afeta de maneira tão determinante o que seria classificado como “tempo livre”, estes funcionários precarizados tornar-se-iam prisioneiros de um círculo empregatício vicioso, que não os especializa e que, além disso, os fragiliza emocionalmente e fisicamente. Afinal, são conhecidas as deficiências vinculadas à segurança do trabalho neste setor.

Por conta disso, o setor de telemarketing é o grande bode expiatório do precariado, sobretudo em sua vertente toyotista – ou seja, embasada na fragmentação de classe, a partir de uma lógica pretensamente participativa que desespecializa os funcionários, visto que estes realizam funções genéricas, em que o fruto de seu trabalho não engendra produtos, mas o serviço em si, que não pode ser mensurado. Na explicação do sociólogo Giovanni Alves, na página 73 de seu livro “O Novo (e Precário) Mundo do Trabalho”, o operário polivalente do toyotismo é colocado à mercê do processo de valorização. Motivo: “eles permanecem ligados a um trabalho ‘estranhado’, pois a lógica do capital o impede de controlar o processo produtivo, no sentido de estabelecer e autodeterminar os objetivos de suas atividades produtivas (o que surge, por meio de seus resultados contingentes, como uma irracionalidade social que contrasta com a racionalidade intrafirma)”.

A despeito disso, a mensuração de condições intangíveis de trabalho insurge-se como indicadores de valorização ou punição funcional. Exemplos: apesar de não ser possível definir quando tempo durará uma ligação telefônica, no linguajar administrativo do telemarketing, existem indicadores como TMA (Tempo Médio de Atendimento) e rechamada, que servem para constranger os funcionários, quando os mesmos não são atingidos.

O primeiro dos indicadores diz respeito a um tempo máximo estabelecido para que dure um determinado atendimento, devendo ser compensado em ligações posteriores, caso seja ultrapassado; o segundo refere-se à situação indesejada em que um cliente retorna o contato no mesmo dia, ainda que por outro motivo. Como de praxe, os funcionários são responsabilizados por conta disso, o que categoriza as “metas desumanas” destacadas da reportagem do Sintratel e expostas de maneira humorística porém crítica no
curta-metragem “Bom Dia, Meu Nome é Sheila ou Como Trabalhar em Telemarketing e Ganhar um Vale-Coxinha” (2009), dirigido por Angelo Defanti.

Trazendo a experiência para um prisma ainda mais pessoal, trazemos o depoimento de um funcionário de telemarketing chamado Wesley, demitido após quase quatro anos de dedicação a esta função, como atendente de telemarketing. Apesar de possuir formação como comunicólogo e até mesmo um Mestrado nesta área, não conseguiu emprego específico, confirmando a redefinição do termo precariado levada a cabo pelo sociólogo Giovanni Alves. Segundo ele, “muitos profissionais podem ter ingressado no nível mais elevado de escolaridade, mas com o mesmo salário, o que reduziu a média de ganho da categoria.

Deste modo, a camada social do precariado possui, em si e para si, um misto de frustração de expectativas e insatisfação social e, por outro lado, carecimentos radicais que o torna susceptível de atitudes de rebeldia”. Wesley experimentou isso na pela. Nos ossos, em verdade: depois de tanto tempo trabalhando sem o devido acompanhamento laboral, contraiu hérnia de disco. Ao tentar esclarecer a situação para os seus patrões, foi submetido à insinuação de que estaria sob afetação depressiva, sendo obrigado pela empresa para a qual trabalhava a buscar atendimento psiquiátrico, a fim de poder validar os atestados médicos – de caráter ortopédico (!) – que apresentava. Após uma acirrada batalha argumentativa, que envolveu a escrita de dezenas de reclamações na Ouvidoria da empresa em pauta, conseguiu ser demitido, gozando de todos os seus direitos constitucionais.

Afligidos pelas mazelas comuns a inúmeros de seus colegas, padece agora de Síndrome do Pânico e mazelas soporíferas além da hérnia discal propriamente dita. Está desempregado, mas gradualmente vai se reinserindo socialmente, podendo, inclusive, realizar o seu sonho de concluir a graduação em Jornalismo, que esteve ameaçada pelos efeitos estressantes de sua atividade empregatícia anterior. Esta reportagem é fruto desta experiência.
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