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Sobre a vida, via cinema, quando tem que ser! (um libelo nipônico)

Sobre a vida, via cinema, quando tem que ser! (um libelo nipônico)

Uma das mais famosas e graciosas definições sobre a Sétima Arte foi atribuída ao cineasta japonês Akira Kurosawa (1910-1998), que, evocando uma anedota infantil de seu neto – que declarou que “o cachorro parece-se com vários animais, mas, ao final, parece-se mesmo com um cachorro” –, alegou que, não obstante possuir elemento de várias outras artes, o Cinema é, acima de tudo, Cinema!

Também célebre por suas habilidades pictóricas, Akira Kurosawa elaborava a fotografia de seus filmes como se fossem verdadeiros quadros, mas não descuidava dos elementos significativos dos roteiros, que comumente exaltavam uma ternura sobressalente, uma confiança desmedida no ser humano. E é isso que percebemos em seu derradeiro filme: “Madadayo” (1993).

Em dada época de sua vida, o diretor chegou a tentar o suicídio, por conta das dificuldades em obter financiamento para seus filmes e a falta de entendimento dos espectadores em relação a algumas de suas obras. E, à guisa de síntese emocional, esta reminiscência surge no enredo do filme supracitado, que ficcionaliza alguns aspectos da velhice do escritor Hyakken Uchida (1889-1971).

Maravilhosamente interpretado pelo eloqüente ator Tatsuo Matsumura, o protagonista de “Madadayo” inicia o filme comunicando a sua aposentadoria aos alunos de uma classe de alemão num colégio mui conceituado. Estamos em 1943, o Japão é constantemente atacado pelos aliados dos Estados Unidos da América durante a II Guerra Mundial, e Hyakken Uchida completa sessenta anos de idade. Sente-se velho, deseja ficar recluso e dedicar-se aos seus escritos, ao lado de sua dedicada esposa. Mas um bombardeio destrói a sua residência e ele é obrigado a depender da ajuda de seus antigos alunos, todos respeitados profissionais na vida adulta…

Depois de alojar-se numa cabana abandonada, o professor Uchida sonha com uma casa onde haja um grande lago, suficientemente amplo para que os peixes não precisem dobrar-se ao percorrer a sua extensão. Graças aos favores dos ex-alunos, adquire uma casa nova e adota um gato, a que chamará de Nora. Entretanto, este sumirá repentinamente, mergulhando o professor aposentado num estado de reiterada melancolia.

Ao longo dos 134 minutos deste filme, pouco acontece, em termos sinópticos. Entretanto, cada seqüência estendida de generosidade torna sumamente evidente a crença extremada do diretor nos bons sentimentos, na capacidade inequívoca dos homens em ajudarem-se uns aos outros. Além da cena inicial, em sala de aula, e das situações envolvendo o desaparecimento do gato, o filme apresenta pouco mais que duas longas celebrações de aniversário, onde compreendemos o significado do título do filme: numa coreografia elaborada, os companheiros de festividade perguntam ao professor se ele está pronto para morrer, ao que ele responde, repetidas vezes: ‘madadayo’ [“ainda não!”]. No desfecho, somos nós que repetimos este singelo mantra vocabular…

Ainda que seja um dos filmes menos consagrados deste diretor, “Madadayo” é uma declaração suprema de amor à vida, de crença na valorização ativa após a Terceira idade. Convocando a necessidade essencial de respeitar os mais velhos, este filme possui um apelo dramático especial para quem vive no Brasil, onde os (potenciais) aposentados são submetidos a emendas legislativas cada vez mais aberrantes, por conta do (des)governo altamente desrespeitoso em relação ao próximo, atualmente no poder. No Brasil, em muitos casos, os idosos são considerados como meros estorvos e privados de seus direitos elementares. Se o filme fosse mais visto, quem sabe não incentivaria um incremento da empatia entre os cidadãos?

Em verdade, convém admitir que o ritmo do filme eventualmente cansa-nos por sua lentidão rítmica, pela ingenuidade excessiva dos personagens e pelo desenrolar arrastado de alguns eventos, mas, ao final, todo o percurso faz sentido: aos 83 anos de idade, Akira Kurosawa refletia sobre as condições de sua própria existência, sobre a trajetória humanista de vida convertida em uma trintena de filmes marcados pela pletora de boas intenções. Ele não dirigiria mais nenhuma obra depois dessa. “Madadayo” foi o seu testamento fílmico, e merece ser revalorizado criticamente depois da recepção morna com que foi recebido à época de seu lançamento…

Em meio a cantigas de aniversário, elogios à beleza lunar, demonstrações elogiáveis de reconstrução do cotidiano no pós-guerra e as características seqüências filmadas sob a chuva intensa, conforme é mui característico no corpus kurosawaniano, Hyakken Uchida, apesar de seus méritos docentes, é apresentado como uma pessoa comum, repleta de medos e anseios, tristezas e amores plangentes. Depois de confessar, na cerimônia de seu 77° aniversário, que chegara a pensar em suicídio, em momentos difíceis de sua vida, admite que, no instante de sua aposentadoria, não era mais que um “jovem ‘punk’”. É a lição que fica deste belo e demorado filme, cujos créditos finais são desenrolados sobre uma imagem de profunda beatitude artística, depois de uma translação onírica do brado titular: as dificuldades existem? Com certeza! Isso habilita-nos a querer abdicar da vida? Definitivamente, ainda não

 

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