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“Se não fosse a guerra, eu casaria com ela”: mais uma vez, voltaremos a estes assuntos…

“Se não fosse a guerra, eu casaria com ela”: mais uma vez, voltaremos a estes assuntos…

Em 02 de julho de 1979, num acidente automobilístico ocorrido durante a pesquisa de locações para um filme, na cidade russa de Tver, a diretora ucraniana Larisa Shepitko [1938-1979] faleceu, aos quarenta e um anos de idade. Conhecida pelo modo arrojado como ela abordava os efeitos da II Guerra Mundial no cotidiano dos cidadãos soviéticos, esta cineasta era recorrentemente vítima da censura, visto que insistia em críticas políticas mui veementes, não tendo receio de ser rotulada como “controversa”.

Seu longa-metragem mais famoso foi vencedor do Urso do Ouro no Festival Internacional de Cinema de Berlim: baseado no romance “Sotnikov”, do escritor belarusso Vassil Bykov [1924-2003], “A Ascensão” (1977) permite-nos acompanhar a jornada de dois soldados soviéticos, em meio a um rigoroso inverno e à perseguição inclemente dos nazistas. Na seqüência inicial, alguns aldeões fogem através de uma floresta congelada, quando os protagonistas são escolhidos para buscar comida para as pessoas esfomeadas.

A partir desta requisição, conhecemos melhor estes personagens: Rybak (Vladimir Gostyukhin) é um homem um tanto rude, mas eficiente em suas diligências militares. Voluntaria-se em diversas missões, esforçando para atenuar o sofrimento de seus colegas de fuga; Sotnikov (Boris Plotnikov), por sua vez, é mais emotivo. Diplomado em Matemática e apaixonado por uma moça com quem não teve a oportunidade de casar, ele acredita plenamente nos ideais comunistas e escandaliza-se ao constatar as atrocidades que ocorrem durante o conflito bélico. Ao longo dos cento e onze minutos de duração do filme, testemunhamos alguns encontros marcantes para esses dois homens, até que a ascensão titular seja revelada.

No primeiro destes encontros, Rybak e Sotnikov conhecem um fazendeiro (Sergei Yakovlev) que é coagido a colaborar com os soldados germânicos, a despeito de sua extrema gentileza para com os partisanos (membros do movimento de resistência antinazista). Num primeiro momento, tememos que ele seja assassinado pelo iracundo Rybak, mas este apenas rouba-lhe um cordeiro. Na tentativa de volta para o local onde estão seus companheiros, Sotnikov é atingido por um tiro na perna, ao mesmo tempo em que consegue acertar fatalmente um atirador nazista.

Um segundo encontro marcante é com a esforçada Demchikha (Lyudmila Polyakova), mãe de três filhos pequenos e cujo marido está no ‘front’. Ao acolher os dois soldados soviéticos, ela é aprisionada pelos alemães, o que conduz o filme para o terceiro encontro, quando entra em cena o temível interrogador Portnov (Anatoli Solonitsyn)…

Impiedoso e traiçoeiro, descobrimos pouco a pouco que Portnov sente uma inveja antiga de Sotnikov, o que fica evidente no modo severo com que ele tortura o ex-companheiro de Universidade. Segue-se o reaparecimento dos personagens supracitados, reunidos numa mesma prisão, condenados à morte por enforcamento. E o impacto causado pelo filme vai além de sua trama, de modo que este resumo é apenas um preâmbulo para as incriminações históricas, discursivamente efetivadas pela realizadora…

Fotografado em um magnífico preto e branco – que hipertrofia a alvura opressora da neve nas paisagens – este filme beneficia-se de uma apuro técnico irrepreensível, com destaque para a sublime trilha musical de Alfred Schnittke [1934-1998] e seus acordes solenes, que referendam as metáforas cristãs pretendidas pela cineasta. À medida que a trama é desenvolvida, o tema da traição é enfatizado nos diálogos e reações ao que é descoberto durante os interrogatórios. Alguns dos personagens são explicitamente chamados de “Judas” pelos moradores dos locais onde ocorrem as execuções, organizadas pelos nazistas como se fossem espetáculos. Tanto que, num determinado momento, um enforcamento coletivo é adiado por “não haver platéia suficiente”. A guerra traz à tona, afinal, o pior que existe em cada ser humano!

Não obstante a extrema crueldade das perseguições e prisões que vemos no filme, há também uma reflexão muito interessante sobre o idealismo de Sotnikov, em contraponto ao pragmatismo de Rybak: em mais de uma situação, este último carrega o outro nos braços, quando ele demonstra-se debilitado por causa dos ferimentos que sofre. Entretanto, é Sotnikov quem pronuncia as declarações mais contundentes acerca das derivações conscienciosas de nossos atos. Seu sobrenome não intitulou o romance em que o roteiro foi baseado por acaso!

Aluna exemplar do cineasta também ucraniano Aleksandr Dovjenko [1894-1956], Larisa Shepitko aplicou diversas de suas características estilísticas em seus próprios filmes, malgrado a diferença de temática e seu fulgor autoral. Tendo realizado pouco mais de um punhado de longas-metragens, ela ficou internacionalmente conhecida justamente por causa do sucesso de “A Ascensão”, à época escolhido para representar a União Soviética na categoria Melhor Filme Estrangeiro do Oscar. Não chegou a ser indicado, mas foi bastante prestigiado pela Crítica especializada.

Quando faleceu, a diretora estava produzindo “A Despedida” (1983), concluído por seu marido Elem Klimov [1933-2003], que também realizou um belíssimo curta-metragem sobre a sua esposa, “Larisa” (1980). Ela é uma cineasta que merece ser mais conhecida, sobretudo na conjuntura hodierna, em que a imprensa mundial noticia com espalhafato as ocorrências assustadoras da guerra entre Rússia e Ucrânia. Conforme foi informado no subtítulo deste artigo, voltaremos a estes assuntos!

Wesley Pereira de Castro.

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