Na manhã de 12 de julho de 2025, a algumas semanas de completar oitenta e nove anos de idade, foi anunciado que o crítico de cinema Jean-Claude Bernardet [1936–2025] falecera. A despeito de ser soropositivo há vários anos e de evitar submeter-se a tratamentos dolorosos contra um câncer de próstata, foi um Acidente Vascular Cerebral (AVC) que ceifou a sua vida. Nos curtas-metragens derradeiros que realizou ao lado do diretor sergipano Fábio Rogério, ele converteu em manifesto o seu desdém contra a mercantilização da saúde: em “Cama Vazia” (2023), por exemplo, ele critica o fato de que “a máquina de morte precisa manter sua longevidade para expandir e lucrar”, conforme diz a sinopse; em “A Última Valsa” (2024), ele deixa patente a sua vontade de não ser reanimado, caso sofra um mal súbito; e, no vindouro “Mensagem de Sergipe” (2025), filmado na ocasião de seu último aniversário, ele declara não ter interesse em gozar de “muitos anos de vida”, tal qual desejam-lhe os amigos. É uma personalidade que, por sua inteligência e originalidade, permanecerá viva por gerações, na sensibilidade de quem compreendeu a riqueza de suas provocações, inclusive algumas decisões pessoais, de caráter foucaultiano.
A fim de converter nalgo intelectualmente produtivo a aflitiva sensação de perda deixada pela notícia supracitada, convém assistir ao ótimo longa-metragem “O Senhor dos Mortos” (2024 – “As Mortalhas”, tradução do título original, em Portugal), mais recente produção do mestre do horror corporal David Cronenberg. Neste roteiro, evidentemente autobiográfico, o cineasta parte de uma reflexão sobre o vazio deixado após a morte de sua esposa Carolyn Zeifman [1950–2017], com quem vivia desde 1979, e que era operadora de câmera e produtora cinematográfica. Para validar a experiência de imersão, o protagonista Vincent Cassel está fisicamente muito parecido com o diretor. Porém, a narrativa parte para os rumos intricados que caracterizam os seus enredos…
Na primeira cena do filme, o magnata Karsh Relikh (Vincent Cassel, extraordinário) observa o corpo despido de sua esposa falecida Becca (Diane Kruger), enterrada num túmulo de alta tecnologia, desenhado por ele, que permite que a sua decomposição seja acompanhada, em tempo real, através de câmeras instaladas ao redor da mortalha que a veste. Logo percebemos que se trata de um sonho ou delírio, e que Karsh está sentado na cadeira de um dentista, que afirma que “o luto está fazendo com que os seus dentes apodreçam”. Preocupado com o bem-estar de seu paciente, o dentista apresenta-lhe a uma mulher “odontologicamente compatível”, mas esta fica assustada ao saber da obsessão do protagonista pelo cadáver de sua esposa. Estamos ainda no começo!
Como é típico dos roteiros deste realizador, a narrativa progride de maneira lenta e aparentemente anticlimática, em que somos apresentados aos comportamentos paranóicos de diversos personagens. A principal delas é Terry (também interpretada por Diane Kruger), irmã gêmea da esposa falecida de Karsh, que acredita que ela foi assassinada pelos médicos. Ao notar alguns corpúsculos estranhos crescendo em volta dos ossos de Becca, Karsh comunica o seu estranhamento à cunhada, que declara que se trata de rastreadores. Implantados por quem e com qual finalidade? A relação de Karsh com o ex-marido de Terry, o programador de computadores Maury (Guy Pearce), fará com que algumas pistas sejam trazidas à tona, sobretudo quando vândalos depredam alguns túmulos em GraveTech, o cemitério gerido pelo magnata. Seria um ato randômico de protesto ecológico ou uma ação orgânica, com vistas a uma chantagem política em larga escala? As interrogações acumulam-se de maneira intensificada, o que só aumenta quando entra em cena Soo-Min Szabo (Sandrine Holt) a esposa sul-coreana e cega de um ricaço húngaro, em estágio terminal de câncer, que deseja ser enterrado em GraveTech.
Magistralmente musicado por Howard Shore, colaborador mais que habitual do diretor, “O Senhor dos Mortos” oferece diversas indagações concomitantes ao luto prolongado de Karsh, que, mais de cinco anos após o falecimento de sua esposa, teme que o sexo seja algo impossível, e assume-se como alguém em estado de “assexualidade terminal”. Sua neo-virgindade será rompida, em determinado momento, mas isso desencadeará alguns delírios envolvendo a esposa morta, que se confundem com lembranças das mutilações corporais a que ela foi submetida enquanto adoecia. É a deixa para que o roteiro faça críticas severas à excessiva confiança dos indivíduos em dispositivos suspeitosos de Inteligência Artificial, através das aparições de Honey (também interpretada por Diane Kruger), avatar cibernético das interações virtuais de Karsh. O que parecia um drama existencial (com esperados toques de erotismo pervertido) avança para uma trama de suspense com questões sociopolíticas envolvendo conflitos de influência numa Guerra Fria contemporânea, capitaneada por chineses e russos, na seara tecnológica. Mas, no fundo – aliás, à frente mesmo – o que temos é uma obra absolutamente autoral, em que David Cronenberg manipula com genialidade temas que surgiram em produções anteriores, e que são reiterados filme após filme, em seu modo arguto de observar os dilemas de seu tempo. Trabalho de gênio, que se consola e nos consola de uma só vez. Celebremos os nossos mortos, validando a importância daquilo que eles nos legaram enquanto estiveram vivos: os cânceres morrem junto com os corpos físicos; a inteligência é eternizada através da mente!
Wesley Pereira de Castro.
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