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“Quando meu pai morreu, eu não queria nada além da felicidade de mamãe”, ou a masculinidade enquanto promessa de violência!

“Quando meu pai morreu, eu não queria nada além da felicidade de mamãe”, ou a masculinidade enquanto promessa de violência!

Dona de uma filmografia não muito numerosa, porém sobremaneira consistente, a neozelandesa Jane Campion foi pioneira ao receber a Palma de Ouro em Cannes e ao ser a segunda diretora indicada ao Oscar, ambos os feitos obtidos graças à sua obra-prima, “O Piano” (1993). Obcecada pelos temas referentes aos perigos da supressão do desejo, ela insere traços assaz característicos em suas obras, sendo um deles a maneira como diversas ações periféricas acontecem enquanto um relacionamento amoroso atravessado por impedimentos sociais é desenvolvido no centro do enredo. Por motivos orgânicos, tudo está relacionado!

Neste seu mais recente filme, adaptado de um romance de Thomas Savage publicado em 1967, ela opera uma guinada centrípeta, de modo que as ações dos personagens – ou, mais precisamente de um coadjuvante que revela-se o imperioso protagonista, ao assumir-se como narrador – são direcionadas à apropriação do ambiente doméstico, numa imponente fazenda de Montana, em 1925. Devido à sua extrema habilidade e à percuciência no desenvolvimento das relações entre os personagens, Jane Campion recebeu o prêmio de Melhor Direção no Festival Internacional de Cinema de Veneza, além de tornar “Ataque dos Cães” (2021) um dos filmes favoritos dos cinéfilos neste ano.

A trama é centrada na rudeza comportamental de Phil Burbank (Benedict Cumberbatch), um fazendeiro pecuarista que dedica-se tão intensamente ao trabalho que evita lavar-se, causando desconforto em quem está ao seu lado, por causa do fedor de cavalos. Evitando os procedimentos de segurança ou higiene quando executa as suas tarefas (castra os bovinos sem usar luvas, por exemplo), Phil diferencia-se bastante de seu irmão George (Jesse Plemons), que está sempre asseado e é gentil com todos. Durante uma celebração numa taverna, George apaixona-se pela faxineira Rose (Kirsten Dunst) e resolve casar-se com ela, o que desagrada ainda mais Phil, que a considera uma aproveitadora…

Viúva, Rose possui um filho adolescente, costumeiramente maltratado pelos fazendeiros: sobremaneira afetado, Peter (Kodi Smit-McPhee) é alvo freqüente das zombarias de Phil e seus empregados, sendo tachado de homossexual e assediado por causa de suas feições delicadas. Obviamente, a convivência entre estes personagens será mui conturbada, depois que Rose passa a viver com o novo marido. Arredio, Phil evita a conversação direta, preferindo intimidar a sua cunhada e o filho dela com galhofas e demonstrações de bravata: quando Peter confecciona algumas flores de papel e as usa como decoração no restaurante em que sua mãe trabalhava, Phil coloca fogo numa delas para acender um cigarro; quando Rose tenta aprender a tocar a “Marcha Radetzky” (de Johann Strauss) ao piano, para agradar o seu marido, Phil a subjuga, executando a mesma música, com perícia, no banjo. Os contatos furtivos entre eles estão sempre à beira da insuportabilidade, portanto.

Um dos pontos culminantes na relação sutil porém intensamente conflituosa entre estas pessoas ocorre quando George convida seus pais para jantar, a fim de apresentar a sua esposa, mas Phil reluta em comparecer, por estar fedido, alegando orgulhar-se disso. Rose fica absolutamente constrangida, por ser leiga em relação aos costumes da alta sociedade, enquanto sabemos que Phil confere ao ato de banhar-se uma aura de solenidade, momento em que relembra um grande amor do passado, cuja perda é a responsável evidente por seus hábitos taciturnos. A revelação que culminará no desfecho, entretanto, é desenvolvida sub-repticiamente…

Dividido em curtos capítulos, o roteiro deste filme serve-se de poderosas elipses, a fim de demonstrar como os personagens avançam em suas desavenças e/ou surpreendentes aproximações: como de praxe na obra da diretora, as opiniões e impressões dos empregados são levadas em importante consideração, em momentos que parecem circunstanciais mas que revelam traços definitivos de caráter. Vide o instante em que uma das assistentes de cozinha da fazenda Burbank leva uma cenoura para o coelho que Peter traz para o seu quarto e o encontra dissecado, já que o garoto é estudante de Medicina e afirma que precisa treinar as suas cirurgias. Uma pista mui relevante para o que acontecerá daí para a frente é explicitada nesta seqüência quase banal!

Se, tematicamente, a brutalidade de Phil destaca-se como assunto-chave, as situações que justificam esse comportamento são ainda mais definitivas – afinal, ninguém é mau por acaso. Pouco a pouco, percebemos que Rose torna-se incontrolavelmente alcoólatra, enquanto uma aliança inaudita é consolidada entre Peter e Phil, estando este último dedicado a tornar o primeiro um vaqueiro. Diante de uma colina, ele pergunta o que o outro vê; “um cachorro rosnando”, ele responde. Aturdido com a resposta, Phil relembra o processo através do qual ele próprio tornou-se um modelo tão embrutecido de macheza: alguém ensinou-me a enxergar além do que os olhos vêem”. Peter agirá como o seu antípoda.

Ao ostentar enquadramentos que evocam o aspecto de despertencimento de um homem valente em relação ao ambiente que o acolhe – tal como acontece em “Rastros de Ódio” (1956, de John Ford) –, a fotografia da australiana Ari Wegner demonstra-se tecnicamente irrepreensível: os vastos ambientes externos não apaziguam os ressentimentos de quem precisa refugiar-se em esconderijos para agir como deseja. A trilha musical intencionalmente perturbadora de Jonny Grenwood também reforça este descompasso entre as paisagens vastas e áridas, porém belíssimas – filmadas na Nova Zelândia – e a frieza sentimental dos personagens. A explicação do título do filme vem através de um versículo bíblico, lido por Peter: “livra a minha alma da espada, e a minha predileta da força do cão” (Salmos, 22: 20). Acontece muito à frente da tela, mas o essencial está nas entrelinhas, de maneira tão intimidadora quanto o assobio onipresente de Phil: trata-se de um faroeste contemporâneo, mas a atmosfera é de terror psicológico!

Wesley Pereira de Castro.

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