Depois de receber um prêmio Emmy de Melhor Comédia por um especial de Natal realizado em 2018, no qual Jesus Cristo desaparece após alcoolizar-se na Última Ceia, a Netflix realizou uma releitura bíblica ainda mais audaciosa, envolvendo menções homossexuais e toxicomaníacas. Como consequência, alguns alardistas pretensamente religiosos iniciaram um boicote à plataforma. A audiência ao mais recente média-metragem do grupo humorístico Porta dos Fundos, responsável por ambos os especiais heréticos natalinos, catapultou: conforme era esperado, o sobejo de falatório em torno do episódio arregimentou a popularidade e criticidade do grupo. E não é a primeira vez em que uma tentativa de censura engendra recordes de audiência, obviamente.
Outra situação: irritado por conta dos discursos inflamados da ativista adolescente sueca Greta Thunberg, o presidente do Brasil (sic) Jair Messias Bolsonaro tachou-a de “pirralha”. Tão logo soube disso, ela adicionou o adjetivo intencionalmente demeritório em sua descrição no perfil do Twitter. E, dias depois, ela foi eleita a personalidade do ano 2019 na capa da revista Time. Merecidamente, acrescentemos.
Não por acaso, parte considerável da popularidade do supramencionado presidente deveu-se a esse tipo de divulgação controversa: quanto mais ele era xingado na Internet, mais conhecido e difundido tornava-se. Quanto mais falava-se mal dele, mais ele se promovia. Foi eleito numa demonstração impressionante do quão vitoriosa é a táctica do agendamento reverso, popularizado no célebre ditado popular “falem mal, mas falem de mim”. E é assim que chegamos à apresentação da excelente telessérie “Years and Years”, produzida em colaboração pelo canal britânico BBC e pela HBO…
No primeiro episódio dos seis que compõem a sua temporada única, conhecemos a família Lyons, composta por quatro irmãos e avó, que assistem ao mesmo tempo, em locais diferentes, a uma entrevista com uma política independente, de nome Vivienne Rook (interpretada por uma Emma Thompson em estado de graça). Respondendo às perguntas de maneira desdenhosa e preconceituosa, ela causa polêmica ao pronunciar um difamado palavrão anglofílico de quatro letras ao vivo, em rede nacional. Anos depois, ela tornar-se-á a pessoa mais importante do Reino Unido, concorrendo independentemente através de um partido recém-criado, cujo nome faz alusão justamente à interdição midiática do palavrão em pauta. Lembra-nos algo tal situação?
Diagnosticando uma tendência avassaladora que ocorreu recentemente em diversos países, esta excelente série demonstra como a extrema-direita política galga terreno e popularidade ao inverter as noções de “politicamente correndo”, assimilando precisamente aquilo que era apanágio dos grupos rebeldes. E, neste sentido, o recurso os termos chulos insurge-se como plataforma de equanimidade social, visto que a aparência de “quebra de protocolo” leva os telespectadores a identificarem-se com atos prosaicos dos políticos, antes enxergados como burocratas inalcançáveis. No Brasil, situações envolvendo Jair Bolsonaro, uma marca popular de canetas esferográficas, chinelas plásticas e macarrão instantâneo foram amplamente divulgadas, mais uma vez ampliando consideravelmente a sua malévola tendência a estar em foco noticioso. Ou seja, Vivienne Rook tinha razão!
Desenrolando-se ao longo de mais de uma década, o roteiro de “Years and Years” inicia-se em 2019 e avança até depois de 2030. Os personagens adultos parecem não envelhecer, o que evoca um antológico depoimento do cineasta brasileiro Sylvio Back, que, ao defender uma estratégia semelhante no seu filme mais brilhante [“Aleluia, Gretchen” (1976)], alegou que “quando as ideias não envelhecem, o corpo resiste”, conforme apregoa um dos personagens do referido filme. Na série, entretanto, este não-envelhecimento externo não impede falecimentos, rusgas, depressões e doenças. E o que é pessoal, familiar, revela-se também como político. Tanto que, num dos momentos mais geniais da série – dentre os vários que ela apresenta – testemunhamos os votos partidários de cada um dos membros da família, que distribuem-se entre Partido Conservador, Partido Trabalhista e Partido das Quatro Estrelas (o ficcional partido da Vivienne Rook), a depender de seus caracteres morais e psicológicos.
Ao abordar questões emergentes da atualidade, como perseguição aos homossexuais, xenofobia generalizada e subsunção gritante às inovações tecnológicas, “Years and Years” pincela um futuro próximo sobremaneira apavorante, que imiscui-se por parecer inofensivo. Num dos episódios, uma adolescente assume-se como “trans-humana”, por exemplo, desejando submeter-se a uma cirurgia para converter-se em dados digitais; noutra subtrama, uma ativista ecológica é contaminada por radioatividade após a explosão de uma ilha artificial chinesa, num ataque por mísseis comandado por Donald Trump (sim, ele mesmo). Num mote repetido mais de uma vez, a matriarca Muriel Deacon (Anne Reid) culpa os seus netos – e, por extensão, os espectadores – por eles estarem na situação caótica em que encontram-se (e encontramo-nos). Afinal, “nós permitimos”. Segundo ela, ao não reclamarmos das injustiças contemporâneas que testemunhamos e ao permitirmos que palhaços dominem a seara eleitoral, estamos legitimando o nosso próprio contrato de autodestruição coletiva. Apesar da generalização, não deixa de ser verdade!
[Pausa para uma confissão em primeira pessoa: hoje eu quis tomar veneno de rato, a fim de acabar com a minha própria vida. Não o fiz por saber que não suportaria as intensificadas dores físicas. Basta o que enfrento diuturnamente com a hérnia de disco, as consequências da sinusite e a alma dilacerada, todas ativadas enquanto redijo este texto.]
Não obstante resolver-se muito mal no derradeiro episódio, quando o roteiro sucumbe a equívocos narrativos e indulgências conscienciosas, além de uma perseguição exagerada a Vivienne Rook como mal em si mesma – quando ela é metonímia de algo muito mais disperso – “Years and Years” destaca-se não apenas como uma das maiores surpresas audiovisuais do ano como instiga-nos a prestar muito mais atenção ao que está ao nosso redor, às pessoas com quem lidamos, aos discursos que promulgamos no dia-a-dia, mesmo em atividades corriqueiras, e às personalidades para quem concedemos audiência. Afinal, não custa lembrar: tudo, absolutamente tudo é político. E somos muito mais responsáveis pelo destino do Universo do que egoisticamente evitamos assumir, na maioria das vezes. Fica aqui, portanto, muito mais que uma recomendação televisiva: interagir com outrem é uma necessidade sobrevivencial de resistência!