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Quando as pessoas riem da tortura psicológica

Quando as pessoas riem da tortura psicológica

Ontem, no dia 08 de outubro de 2019 (ao menos data que eu recebi em diversos grupos no qual participo), circulou por Whatsapp, um aplicativo de comunicação interpessoal, um pequeno vídeo no qual “estrelavam” uma mãe e seus dois filhos menores. Aparentemente há alguém mais a filmar, mas esta informação não é precisa e nem tenho como comprovar. O que sei é que lá estão os três. Neste pequeno curta, o nome das crianças é por várias vezes mencionado e, por razões óbvias, não os citarei aqui.

Mas vamos ao cenário. Nele aparece a mão da mãe portando um cinto, inquirindo seus filhos sobre quem pegou uma bolsa com canetas e os marca-textos, com o objetivo de saber quem os utilizou no papel para fazer um desenho. Sempre empunhando um cinto na mão, faz as perguntas e com o mesmo cinto aponta para o “fatídico” desenho e pergunta quem o fez. Até este momento, o menino, pouco mais velho que sai irmã, está tentando explicar a situação ocorrida, mas não consegue, pois é sempre por ela interrompida, não só pelas constantes acusações dela em relação a ele, mas também pelo seu choro amedrontado, por sua feição de pânico diante do cinto empunhado pela mãe.

O menino, no início, assume a responsabilidade por ter pego a bolsa com as canetas e afirma que em fez o desenho com as canetas e marcadores foi a sua irmã. Sua irmã nega, em total desespero, toda a história e apenas aponta um único “culpado”: o irmão.

No entanto, tudo muda quando a mãe pega o desenho da mão do menino e diz: “tá, quem fez este desenho lindo vai ganhar um presente, porque ficou muito lindo!”, momento no qual a menina muda as feições de imediato e clama: “fui eu, fui eu! Pra você… é pra você! (risos da mãe).

Os risos não foram só da mãe. Os risos foram de muitos que receberam este vídeo que circulou e que por aí anda circulando. No entanto, na minha modesta opinião, não há nada de engraçado neste vídeo. Há sim uma grande tortura psicológica que se presencia no início do vídeo, com uma menina aterrorizada na frente do cinto. Capaz ela de assumir a responsabilidade dos seus atos? Pelo visto não, até porque culpou o irmão. Está errada em culpar o irmão? Ela estava sob ameaça de ser castigada com um cinto por ter feito um desenho em um papel. E atenção. Não se está falando em desenho no chão, desenho na parede, nos móveis ou qualquer outro lugar que uma criança ainda seria capaz de fazer e que ainda assim não justificaria levar uma surra de cinto nem sequer ser ameaçada por tal; pior ainda: ela fez um desenho no papel.

Como ensinar uma pessoa a se responsabilizar por seus atos, quando se empunha um cinto na mão para assim se “descobrir a verdade” dos fatos?

Fala-se de tortura no meio penitenciário, por exemplo, quando, através desta forma de intervenção se pretende descobrir algo, uma confissão; utilizada também como castigo. Este ato é visto, e assim o é, como desumano, como violador dos direitos humanos. No entanto, muitas das vezes esquece-se que este método é, em não raros momentos, aplicado sobre as crianças, dentro de casa, pelos pais ou cuidadores e sequer se dão conta que estão praticando sim um ato de tortura, seja física, seja psicológica.

A educação e respeito aos direitos humanos começa em casa e não se pode olvidar de que as crianças são sujeitos de direitos, merecedoras de dignidade, de respeito. Não podem ter seus direitos, sobretudo humanos, violados sob o argumento de que “são meus filhos”, “eu é que educo”, “pé de galinha não mata ninguém”, “eu apanhei e nunca fiquei traumatizado(a)” e tantos outros argumentos que se ouve.

Esta criança não aprendeu absolutamente nada de positivo com aquele ato praticado pela mãe, salvo a prática da delação (que nem sabemos se justa ou não) e o momento em que a mesma assume o fato, onde continuamos sem saber se a mesma praticou ou não a “terrível” ação de desenhar no papel, posto que não mais sob a ameaça de uma surra de cinto, mas sob a troca de um belo presente. Esta é a educação que se pretende às crianças?

Que não venham os que não tem olhos de ver afirmar que não passa de “mimimi”, que estamos passando por um “momento chato do politicamente correto”. Não! Estamos cada vez mais experimentando um momento de reflexão, de mudança de paradigmas, onde continuar nos mesmos moldes, fazendo o mesmo que era feito no século passado já não cabe mais; não encontra mais espaço.

Há sim formas de comunicação positiva, eficiente, que temos, nós mesmos adultos, que reaprender a utilizar. Jogar fora antigas crenças de que “comigo foi assim e tudo bem”. O mundo é outro e é sempre para frente; sempre a evoluir. Temos que (re)aprender a falar e a nos comunicar, onde não busquemos mais culpados, mas sim aprendamos, cada um de nós a olhar para si próprio e a se responsabilizar por seus próprios atos e, neste sentido, ensinar seus filhos, a também a se responsabilizarem. Responsabilidade é muito diferente de culpa, e, desta forma, para a primeira hipótese, não há necessidade de punição, muito menos extraída com base na tortura.

Não há nada para se rir neste vídeo. E é lamentável que se encontre pessoas capazes ainda, em pleno século XXI, de rirem com a tortura, de rirem com a extração da “verdade” por meio do suplício psicológico, de rirem com a dissimilação que se vai implantando na cabeça de uma criança de tenra idade em formação. Não, não há nada para rir. Se há, o mundo está ao contrário e eu não reparei.

Imagem (ambermb) de uso gratuito em Pixabay

Cristiane Reis
Doutora em Direito e em Sociologia
Professora adjunta do Instituto de Estudos Comparados de Administração de ConflitosDepartamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense – Advogada – Mediadora de conflitos – ICFML

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4 respostas

  1. Assisti ao vídeo e, apesar da graça da mudança brusca de fala da menininha, pensei o mesmo que você. Fiquei horrorizada de ver aquele cinto apontando para duas crianças tão pequenas. Boa reflexão.

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