Num texto chamado “Introdução ao Slow Cinema”, publicado na revista Multiplot!, a crítica de cinema Camila Vieira faz um apanhado de citações sobre teóricos e pesquisadores que utilizam o referido conceito e cineastas contemporâneos que o aplicam diretamente em suas produções (Béla Tarr, Nuri Bilge Ceylan, Tsai Ming-Liang, Lav Diaz e Sharunas Bartas, entre tantos outros). Citando uma definição efetivada por Michel Ciment, a partir do que ele chamou de “cinema da lentidão”, a crítica destaca a seguinte passagem, contida num artigo de 2006, chamado “The State of Cinema”: “ao se tornarem impacientes com o bombardeamento de som e imagem em que eram submetidos como espectadores de TV e de cinema, alguns diretores reagiram com um cinema da lentidão, da contemplação, como se quisessem viver novamente a experiência sensorial de um momento revelado em sua autenticidade”. É muito fácil identificar tais aspectos nos filmes dos diretores supracitados, mas, hoje em dia, podemos também detectá-los em produtos inusitados, como as transmissões ao vivo de ‘youtubers’…
Obcecado pela transmissão do que ele categoriza como “‘live’ infinita”, o ‘youtuber’ carioca Rafael Abreu, já suficientemente conhecido na Internet, foi acessado por públicos distintos daqueles a que está habitualmente acostumado, quando transmitiu o concerto gratuito da cantora estadunidense Lady Gaga, em 03 de maio de 2025, na praia de Copacabana, que foi freqüentado por mais de dois milhões de pessoas. Ao invés de apenas exibir o ‘show’, à distância — afinal, transmitido pela Rede Globo de Televisão, que exigiu os direitos das imagens transmitidas pelo ‘youtuber’ —, Rafael Abreu, que utiliza a alcunha Leafar FX, compartilhou a chegada das pessoas à praia, além de caminhadas pelas cercanias do evento, após o término do mesmo. Ou seja, ele transmitiu doze horas quase ininterruptas de transmissão. As interrupções aconteceram apenas por causa de falhas eventuais no sinal de internet utilizado pelo rapaz.
Nos conteúdos transmitidos comumente por este ‘youtuber’, ele caminha pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro, em plena madrugada, aventurando-se por lugares desertos e conversando com os transeuntes que encontra, além de interagir com as pessoas que comentam no ‘chat’ da transmissão. Como ele realiza essas transmissões com assiduidade — ao interpelar as pessoas, Rafael refere a si mesmo como “super famoso” —, as pessoas que comentam no ‘chat’ fazem constantes referências a situações anteriores, como um instante em que o ‘youtuber’ foi assaltado ao vivo. Qual o interesse do público por esse tipo de transmissão? Se, no caso do concerto de Lady Gaga, o chamariz deveu-se à possível falta de acesso aos canais abertos ou fechados de televisão, no dia a dia, a audiência às “‘lives’ infinitas” que são disponibilizadas no canal Leafar FX, no YouTube, chamam a atenção, pitorescamente, por características associadas aos apreciadores do ‘slow cinema’: a passagem do tempo ‘per si’.
Avaliemos um exemplo cinematográfico brasileiro: no ótimo documentário cearense “Sábado à Noite” (2007, de Ivo Lopes Araújo), a equipe reduzida do filme propõe um inusitado projeto, em que pessoas aleatórias, inicialmente abordadas numa rodoviária, são convidadas a darem “carona” para os responsáveis pela feitura da obra, que, assim, acompanhariam situações corriqueiras daquela noite em particular, que calhou de ser um sábado, conforme explicitado no título. Neste sentido, testemunhamos as peripécias de duas senhoras, ao atravessarem uma avenida movimentada; ficamos em companhia de um casal que vê um filme, durante uma exibição televisiva, numa lanchonete; passamos algum tempo junto a alguns garotos, que passeiam na madrugada; e, ao final, na aurora dominical, encontramos um vigilante encerrando a sua jornada empregatícia, enquanto a câmera persegue alguns pombos, assustados, ao som de grilos, que substituem a execução distante de uma canção interpretada por Roberto Carlos, “Ele Está Para Chegar”, lançada em 1981, cujo refrão prediz: “Pare pra pensar/ Pense muito bem/ Olhe que esse dia já vem”. Nada parece por acaso, nem mesmo durante a captação do mero acaso!
Numa de suas ‘lives’ mais recentes, transmitida a partir das vinte horas e vinte e oito minutos da noite de 06 de maio de 2025 — e que durou mais de sete horas —, intitulada “No Rio de Janeiro, sobrevivendo ao chat nas ruas”, Rafael Abreu faz comentários machistas sobre o relacionamento assimétrico com a sua namorada Esperanza, locomove-se através de um metrô e, nos calçadões de Copacabana, conversa com algumas pessoas, até ficar sozinho pelas ruas, conforme é habitual nos conteúdos disponibilizados em seu canal. Com o nariz comumente entupido — há quem o tenha apelidado de “catarrento”, por causa disso —, Rafael encontra diversos estrangeiros e, num trecho interessantíssimo do vídeo, interage com o pitoresco casal formado por uma mulher paraense e um turista norueguês. Ela paga carne e vinho para Rafael e parece flertar com ele, chegando mesmo a convidá-lo para visitar um bordel, ao lado de seu namorado. Um indiano senta ao lado do trio e interage, em inglês, por alguns minutos, até que o norueguês se irrita e puxa a sua namorada embora, deixando Rafael sozinho no restaurante. Quando ele sai do estabelecimento, temendo precisar pagar a conta, ouve as reclamações de algumas prostitutas, que se incomodam ao perceber que foram filmadas sem autorização. Com fome, com vontade de urinar e irritado pelos comentários de quem assiste à ‘live’, Rafael senta-se numa lanchonete, onde é observado por uma atendente — que bebe um copo de leite, atrás do balcão em que trabalha — e é dialogicamente abordado por um turista argentino que fôra assaltado na noite anterior. Ouvimos o que acontece na lanchonete (a movimentação das funcionárias aos pedidos apressados dos clientes, as reclamações concernentes aos altos preços dos produtos, os procedimentos necessários à limpeza de um copo que se quebra), até que Rafael se levanta e continua a sua peregrinação solitária — e um tanto inconveniente — pela orla, encontrando personagens curiosos no trajeto. A quem esse tipo de conteúdo interessa? E o que isso tem a ver com a definição de ‘slow cinema’? São perguntas feitas por alguém que achou este conteúdo extraordinário, não obstante a imaturidade evidente nas falas preconceituosas do mestre imagético de cerimônias, que faz tudo para conseguir dinheiro, a fim de angariar o financiamento de uma viagem ao Peru. Temos algo merecedor de atenção e reflexão aqui, para quem observa com fascínio as manifestações audiovisuais da contemporaneidade.
Wesley Pereira de Castro.
Fonte da imagem/’frame’ de vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7U7AQhJYOvo&t=17830s



