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Ponto para o cinema libanês – ainda que nem sempre as boas intenções sejam suficientes

Ponto para o cinema libanês – ainda que nem sempre as boas intenções sejam suficientes

Já foi dito que, em Política e Arte, apenas boas intenções não bastam. Por mais contraditório que pareça, nessa duas áreas interseccionadas, a realização eficaz de propósitos requer uma combinação de elementos e anseios que ultrapassa as tendências morais dos autores, e vice-versa. Neste sentido, um mau caráter é perfeitamente capaz de engendrar obras aplaudíveis, enquanto não raro alguém sumamente caridoso pode enveredar pela mediocridade estilística ou pela inefetividade filantrópica.

Em termos políticos, em razão das exigências ideológicas cada vez mais delicadas da contemporaneidade, esse tipo de paradoxo torna-se sobremaneira evidente. Que o diga o cabedal de polêmicas sobre apropriação cultural e objetificação erotógena envolvendo a contribuição da atriz brasileira Alessandra Negrini num protesto carnavalesco em prol dos povos indígenas, quando desfilou utilizando pinturas nativas, mas vestindo um maiô e uma sandália de saltos altos. As críticas ao seu gesto bem-intencionado foram implacáveis, mesmo quando conceituadas lideranças indígenas defenderam-na. Acontece…

Algo bastante semelhante pode ser observado na apreciação comumente entusiástica ao filme libanês “Cafarnaum” (2018, de Nadine Labaki), impressionante na coragem em enfrentar as agruras da miserabilidade infantil, mas precipitado em sua composição de personagens, fazendo com que libelos militantes exógenos surjam em meio aos diálogos. Exemplo-mor: o ponto de partida tramático do filme, que é a declaração de um menino de supostamente 12 anos, num tribunal, querendo processar seus pais por ter nascido. É algo que chama a atenção pela impavidez, mas, na diegese fílmica, soa forçado, artificial…

Analisemos o filme com maior cautela, portanto. Recebedor do Prêmio do Júri no Festival Internacional de Cinema de Cannes, em 2018, indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e merecedor de inúmeras láureas internacionais, “Cafarnaum” foi um dos filmes mais elogiados no ano em que foi lançado, sendo um sucesso avassalador de público e de crítica. Terceiro longa-metragem da diretora Nadine Labaki (que faz uma pequena participação no filme, como a advogada que defende o protagonista infantil), concedeu bastante visibilidade ao cinema libanês e instaurou um clamor generalizado em prol dos menos favorecidos do país, para o qual contribuiu a simbologia incontestável da cidade-título, assaz mencionada nos textos bíblicos. Entretanto, o roteiro desta obra é defeituoso justamente pela celeridade pretendida na resolução dos árduos conflitos trazidos à tona.

O garotinho levado ao tribunal – inicialmente como réu, em seguida como acusador – chama-se Zain (interpretado de maneira arrebatadora pelo homônimo sírio Zain Al Rafeea, que hoje vive na Noruega), e presume-se ter 12 anos de idade. A indefinição em pauta deve-se ao fato de ele nunca ter sido registrado oficialmente, não sabendo sequer o dia em que nasceu. Zain cumpre pena por ter esfaqueado um homem, e não se arrepende disso, conforme deixará claro durante o julgamento. Quando convoca os seus pais, para processá-los por negligência e descaso, as situações que levaram-no a ser preso são deslindadas através de ‘flashbacks’. E é assim que descobrimos que ele e seus irmãos pequenos são maltratados desde cedo.

Além de trabalhar como entregador numa mercearia local, onde é comumente assediado pelos clientes, Zain também auxilia a mãe a conseguir remédios entorpecentes, que são dissolvidos e espalhados em roupas molhadas, a fim de serem levados a parentes aprisionados, que traficam as referidas substâncias no interior de seus respectivos confinamentos. Em dado momento, Zain percebe que a sua irmã Sahar (Cedra Izzam), com cerca de 11 anos de idade, menstrua, o que a tornaria apta a ser entregue em casamento para o rude dono da mercearia. Sahar não sabe como lidar com o sangramento que não compreende, cabendo a Zain toda a assistência em relação à obtenção de absorventes furtados, inclusive. Apesar de impactante enquanto denúncia, a encenação deste dilema pré-adolescente soa pouco verossímil, quiçá por dificuldades de produção ou restrições religiosas, já que o Líbano é um país predominantemente muçulmano.

Depois que Sahar sai de casa, contra a sua vontade, Zain também foge e, após seguir por acaso um idoso fantasiado de Homem-Barata, conhece uma refugiada etíope, Rahil (interpretada pela bela Yordanos Shiferaw), que exerce várias funções sub-remuneradas, pois, além de estar ilegalmente no país, possui um filho pequeno, Yonas, cujo pai não auxilia em sua criação. No afã por conseguir o dinheiro necessário à obtenção de um passaporte falso, Rahil é presa, de modo que o ainda bastante imaturo Zain é obrigado a cuidar do bebê, sem dinheiro, água e comida. O que se segue é um doloroso processo de sobrevivência infantil, com inevitável apelo às práticas criminais e, em termos fílmicos, acompanhamento de uma trilha musical xaroposa e condutiva. Nadine Labaki prefere a emoção comiserativa ao choque e, por conta disso, recai em opções narrativas desgastadas pelo convencionalismo.

Noutras palavras: por mais que “Cafarnaum” seja um filme impactante e digno de atenção e reações variegadas, em termos estritamente cinematográficos, ele é pusilânime, óbvio, quase chantagista nalguns momentos. Isso não invalida a sua pujança dramática, mas faz com que desconfiemos de seus objetivos pretendidos. Afinal, a diretora permanece otimista, a ponto de fazer com que Zain conscientize-se de sua situação através de um programa televisivo e aceitar como desfecho válido o sorriso paralisado deste protagonista, quando é fotografado para obter a sua tardia Carteira de Identidade. Isso resolve algo? Para além de qualquer resposta, é, no mínimo, uma tentativa válida. Como muitas das outras ações reais condenadas impiedosamente por militantes exauridos pelo sobejo de golpes malévolos de seus oponentes. Seguiremos reagindo a tais tentativas: numa necessidade hipotética de escolha entre os atos defeituosos e a inação, que proliferem os primeiros!

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