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“Para pensar na desgraça, é necessário senti-la!”: mais uma vez, falemos sobre a ressignificação da dor através da arte…

“Para pensar na desgraça, é necessário senti-la!”: mais uma vez, falemos sobre a ressignificação da dor através da arte…

Numa noite de 2001, não lembramos exatamente o mês, um rapaz negro de nome Rômulo voltava de seu trabalho. Era uma sexta-feira, ele estava com dezoito anos de idade, e acabara de receber o seu primeiro salário. Passara o restante da semana numa cidade do interior sergipano, onde contribuíra para a edificação de uma represa. Mal desceu do ônibus, ele foi abordado por policiais, que o revistaram de maneira traumática, com violência e, segundo ele, até confiscaram uma das cédulas recém-recebidas. Ele não registrou denúncia, mas chegou em casa aos prantos, indignado pela extrema injustiça a que foi submetido, na esquina da rua em que reside. Trata-se de mais um caso de racismo estrutural, que não seria conhecido, se não fosse aqui descrito. Afinal, Rômulo não é famoso: o relato pôde ser publicizado porque ele é o irmão mais novo do autor deste texto.

Estabelecendo um paralelismo gritante com um caso público de impunidade, o réu e facínora Jair Messias Bolsonaro zomba da Justiça brasileira desde antes de ser eleito como Presidente do País, mas, mesmo assim, ainda não está preso: foi obrigado a usar tornozeleira eletrônica, além de ser submetido a horários de restrição locomotiva e proibido de se manifestar nas redes sociais ou conceder entrevistas. Por que ele ainda não foi preso, a despeito de seus crimes e incitações golpistas serem amplamente difundidos, em âmbito midiático, inclusive por ele próprio? Paradoxos da vida real, poderíamos responder de maneira genérica, porém assertiva.

É a partir de um desses paradoxos que o documentário “A Lembrança de um Futuro” (2001, de Yannick Bellon & Chris Marker) foi edificado: realizado pela filha da personalidade homenageada e pelo idealizador do que hoje conhecemos como cinema-ensaio, este média-metragem, com pouco mais de quarenta minutos de duração, homenageia os feitos de Denise Bellon [1902–1999], uma fotógrafa francesa que, ao registrar imagens do pós-guerra, captando situações ocorridas após a I Guerra Mundial, captou, por similaridade previdente, elementos concernentes ao pré-guerra, no sentido de que evidenciam questões que balizariam os eventos da II Guerra Mundial, ocorrida entre 1939 e 1945. Exemplo: ao flagrar os relances de pessoas despidas, celebrando a própria nudez enquanto indicativo de liberdade, ela chamou atenção para o culto à perfeição corporal que se tornaria uma das bases ideológicas do Nazismo. Idem para a sua idealização imagética do povo cigano que, ao ser matéria de capa numa revista onde se publicaram trechos do livro “Minha Luta”, de Adolf Hitler [1889–1945], metonimizou a autenticidade de um povo que foi intencionalmente dizimado pelos nazistas, de maneira quase tão persecutória quanto os judeus, nos campos de concentração que se espalharam pela Europa, no conflito supramencionado.

O título do filme possui um jogo de palavras também utilizado num célebre romance mexicano, “As Lembranças do Porvir”, de Elena Garro, publicado em 1963 e convertido em longa-metragem em 1968, por Arturo Ripstein, que deu origem ao realismo mágico latino-americano. Porém, ele foi extraído de um poema de Claude Roy [1915–1997], a quem o documentário é dedicado: “partiu para nunca mais voltar/ E sendo apenas para mim/ A lembrança de um futuro/ Que se acreditava humano”. Isso tem a ver tanto com este filme em si quanto com aquilo que tencionamos em nossos escritos, nesta coluna: partir de eventos de um passado documentado para assegurar a validade de um presente dignificado que, ao ser reconhecido e compreendido enquanto tal, nos assegura algum futuro enquanto entes históricos, políticos e artísticos. O que fazemos em nosso dia a dia não é gratuito ou desprovido de sentido humanista, afinal.

Nos diversos registros fotográficos de Denise Bellon, analisados pelo filme, acompanhamos percepções sublimes, como o lamento relacionado aos destinos dos poetas surrealistas (um deles se converteu ao franquismo, outro foi deportado, etc.), a constatação de que astros de filmes franceses tornar-se-iam membros da resistência contra a invasão alemã ou a abnegação do cineclubista Henri Langlois [1914–1977], que resistiu bravamente contra a possibilidade de que os filmes desaparecessem, guardando rolos de películas em sua banheira domiciliar. Noutro registro, a diretora captou a efígie melancólica do engenheiro envelhecido Auguste Lumière [1862–1954], coinventor do Cinema, que relutou em admitir que a sua invenção possuía, sim, inúmeras possibilidades de exploração comercial. Em conotação invertida, a fotógrafa testemunhou registros fascinantes de populações africanas, cujos países foram implacavelmente explorados pelo colonialismo francês. Ao assistirmos a este média-metragem ensaístico, compreendemos o que o teórico Timothy Corrigan quis dizer ao se debruçar sobre obras que descrevem “as atividades de múltiplos níveis de um ponto de vista pessoal como uma experiência pública”, conforme foi característico das produções realizadas por Chris Marker [1921–2012], nas quais fica evidente, através de narrações subjetivas, uma dimensão essencialmente política, derivada do “encontro entre um eu aberto e protéico e a experiência social”. Eis a nossa pretensão também: que os nossos escritos sirvam, de alguma maneira…

Wesley Pereira de Castro.
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Fonte da imagem disponível em: https://d1eg2pfkb4bemp.cloudfront.net/img/p/5/0/4/504.jpg

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