Em 17 de novembro de 2018, a França foi marcada por uma série de protestos, comandados por pessoas que eram reconhecidas pelo uso de coletes amarelos. Tal qual ocorreu em vários países do mundo, em insurreições semelhantes, as reivindicações ultrapassaram o seu escopo original, à medida que foram ganhando maior visibilidade. E, ao mesmo tempo, por serem atreladas a um forte simbolismo indumentário, também ficam à mercê de um fetichismo tendente à assimilação midiática do cyber-ativismo. Obviamente, isso não diminui o impacto positivo dos protestos, enquanto reconhecimento comunitário de um forte ímpeto por transformações sociais urgentes. Mas também leva-nos a uma contínua reflexão sobre a capacidade oportunista dos maquinadores capitalistas em sobreviverem às crises que eles próprios provocam e que eventualmente retroalimentam…
Um ano após a data supracitada, a principal revista de crítica cinematográfica do mundo, a publicação francesa Cahiers du Cinéma, divulgou um impactante editorial sobre filmes que abordam de maneira imersiva esta tendência revoltosa característica dos tempos hodiernos. E, dentre os filmes elogiados pela revista, encontramos “Sinônimos” (2019), dirigido pelo cineasta israelense Nadav Lapid e premiado com o Urso de Ouro no Festival de Berlim do ano em que foi lançado. Merecidamente, aliás!
Em “Sinônimos”, acompanhamos a desesperada jornada identitária de Yoav (impressionantemente interpretado por Tom Mercier), um rapaz que emigrou de Israel para a França, fugindo da obrigatoriedade letal do serviço militar em seu país natal. Comumente despido – e progressivamente circundado por tons amarelos na paleta cromática do filme –, no afã por descobrir-se a si mesmo e redefinir-se enquanto possível cidadão francês, Yoav flerta simultaneamente com os dois partícipes de um casal: em relação ao componente masculino, o pretenso escritor Émile (Quentin Dolmaire), ele doa-lhe anedotas pessoais de sua rotina familiar israelense, a fim de que o jovem renegue as exigências de seu pai industrial, que deseja que ele continue as suas opressoras funções administrativas; em relação à moça, Caroline (Louis Chevillotte), ele cede aos seus impulsos erotógenos e, após algumas transas casuais, cogitam um casamento com vistas à obtenção da cidadania definitiva francesa. Mas nada é tão linear como parece neste arremedo de sinopse…
Dirigido de maneira frenética e conduzido por um trabalho alucinante de câmera – que mimetiza, em estilo subjetivo indireto livre, os encontros quase esquizofrênicos de Yoav com os transeuntes – “Sinônimos” é um filme que incita a explosão de ações e sensações a cada instante. É um puro filme de revolta, indeciso em seu discurso de adesão, justamente porque respeita o percurso desamparado de seu alucinado protagonista, cuja biografia é perpassada por traços da própria vida do diretor. “Sinônimos” não oferece respostas para o elã terrorista, evocado em mais de uma situação, mas, pelo contrário, obriga o espectador a uma dolorosa reflexão sobre o reconhecimento subjetivo, que permanece ativa após o desfecho em aberto da sessão, marcado por uma seqüência de golpes físicos auto-imolados que atordoa pela aparente indefinição de propósitos. Afinal, desde a sua entrada em cena, completamente nu, Yoav erra, nos dois sentidos do termo. Erra bastante!
A polissemia do verbo “errar” não aparece de maneira casual aqui: conforme o título do filme emula, “Sinônimos” é repleto de provocações gramaticais, visto que a rejeitada conversão de Yoav em cidadão francês esbarra em freqüentes dificuldades de compreensão do idioma francófono e nas reiteradas situações que obrigam-no a rememorar o idioma que deseja esquecer, o hebraico. Numa das seqüências mais impactantes do filme, Yoav é intimado a despir-se em frente a um fotógrafo alegadamente pervertido e, após introduzir um dedo em seu ânus, a gemer como um homossexual israelense. Inicialmente, Yoav recusa: “eu nunca me masturbo”, reclama ele, quando é cooptado a alisar a sua coxa e tocar em seu pênis, mas, quase sem perceber, repete algumas frases hebraicas em seu gozo simulado. Fora pago para tal. Precisaria ele de dinheiro? Jamais sabemos precisamente…
O filme avança e, por mais que a câmera pareça colada a Yoav, sabemos menos sobre ele quanto mais testemunhamos as suas experiências (sobre)vivenciais. Apenas sentimos. Até um instante antológico em que a professora de Francês vivificada por Léa Drucker estimula uma turma de imigrantes a recitar os hinos nacionais de seus respectivos países. De repente, numa confusão proposital com o que parece ser a moral fílmica, ela olha diretamente para o espectador e assevera que a laicidade é o traço determinante das democracias. O respeito à sexualidade alheia, idem.
Deixamos em suspenso a magnificência deste filme – sem dúvida, um dos melhores e mais politicamente representativos de 2019 – para elogiarmos uma explosiva artista braseira: proveniente de Sergipe, o menor Estado do país, a ‘rapper’ transexual Isis Broken erige sua ainda curta mas representativa obra sobre o signo da revolta afirmativa, que carece da violência como prolongamento identitário. Internacionalmente malfadado como o país em que mais transexuais são assassinados anualmente, o Brasil é metonimicamente criticado em cada verso de canções sumamente protestantes como “Assassina Sideral”, “Capeta Gasolina” e congêneres. Mas o carro-chefe da artista é o manifesto que atende pelo nome de “O Clã”, onde ouvimos: “Bruxas têm antepassados/ Eu tenho meu transpassado/ Gritaram que eu sou viado, numa rua suja/ Cala tua boca, que meu cu é uma bazuca/ Faço bruxaria, porra louca igual à Cuca/ Sou a suprema desse clã/ Eu fodo a porra toda”. O restante é enfrentamento diuturno!