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O Sol é para Todos e o moralismo nosso de cada dia: uma crítica

O Sol é para Todos e o moralismo nosso de cada dia: uma crítica

Resenha crítica do livro To Kill a Mockingbird (O Sol é para Todos)

A história do livro se mistura à da escritora Harper Lee em diversos momentos, tanto pelo contexto histórico quanto pela utilização de algumas vivências próprias. O nome de sua mãe, inclusive, é espalhado pelos personagens. Já para o seu pai, deu o papel de Atticus Finch.

O enredo é provocativo para a época. Corajoso, eu diria. Passa-se na Grande Depressão de 1929, época em que pessoas lutavam por um pedaço de pão. E o cenário não poderia ser outro, a conservadora sulista Alabama, na fictícia Maycomb.

Lee traz sua infância para o livro, pois tinha a mesma idade que Scout quando da narrativa, essa em primeira pessoa. Uma menina de seis anos que atravessa outros três lidando com as questões sociais.

Mas o livro não é sobre racismo, apenas. É rasa essa conclusão. Rasa e injusta. O livro provoca para outro lado, ainda que use o racismo como pano de fundo. Escrever sobre a segregação racial no auge da luta por direitos civis negros é quase que chover num molhado sazonal e oportunista, e acredito (até pelo lançamento da continuação da novela, 55 anos depois), que Lee não pretendia mitificar ninguém, mesmo que fizesse homenagem ao pai.

Autores não escolhem nomes de personagens numa mera epifania numa quarta-feira chuvosa, e ao que parece, Lee não seguiu esse protocolo. Os nomes foram meticulosamente pensados, não apenas na homenagem materna, mas ao que ela queria propor.

E para não dizer que é teoria da conspiração, o que proponho se alinha perfeitamente à proposta do livro: o moralismo branco e a manutenção do status quo sob o viés de um herói fabricado que fez tudo o que pôde.

Calpúrnia, a governanta da casa do Sr. Finch, vem de um nome latim de uma família plebeia que ascendeu à política romana. Calpúrnia retrata a empregada “quase da família” que temos no atacado hoje na sociedade. Tem autonomia para educar Jem e Scout, mas ainda é a empregada, ainda serve o lanche das crianças brancas. Não se sabe muito da sua vida, é irrelevante no contexto da época.

O povo sulista da época era bem nuclear, as pessoas confiavam mais nos políticos não quando estes faziam discursos acalorados, mas quando eram seus vizinhos, razão pela qual a confiança do Alabama sustenta-se em palavras, e palavras brancas. Não obstante a segregação racial, porém, há que se mencionar que havia castas em Maycomb, o que se acentua pela repulsa que a sociedade tinha da família de Bob Ewell, considerando-a “lixo”.

Scout (Escoteira), Louise Finch, é a garotinha que narra todo o enredo. Ela não é “escoteira” por acaso: luta contra paradigmas de uma sociedade feminizada, de comportamentos castos, vestidos e laços de fita. Ela é travessa, briguenta, curiosa, e junto com seu irmão Jem e o vizinho Dill, exploram a pacata cidade, principalmente a casa sombria dos Reddley’s.

Aqui reside o dilema de Hobbes, Rousseau e Lock: o primeiro considera que o ser humano é, por natureza, mau, e a sociedade cria leis para “endireita-lo”. Já Rousseau acredita que o ser humano nasce bom e a sociedade o corrompe. O último, por sua vez, considera o indivíduo como uma tábula rasa, ou seja, uma esponja que vai absorvendo crenças, valores, vícios e estereótipos ao longo da vida.

É por isso que o dilema de Lee é mais pretérito que o racial. Ela (se) questiona sobre a infância conservadora e preconceituosa, ao mesmo tempo que tenta romper barreiras de gênero. Scout e os meninos escolheram um vilão: Boo (fantasma) Raddley, e sobre sua vida descreveram as mais atrozes circunstâncias. (Tentativa de assassinato, comer esquilos, arranhar janelas, perambular de madrugada para assustar moradores, etc.). Travessuras da idade? Peraltices cognitivas? Com base em qual parâmetro? Qual era a régua (ou ausência desta) moral para as três crianças?

Atticus também não teve seu nome escolhido aleatoriamente. Seu nome se deve a um teatro feito na Grécia, antes de Cristo, pelo imperador Herodes Ático, em homenagem à esposa que falecera. Não por acaso o Atticus do livro é viúvo. E teatral.

Teatral porque teve a oportunidade de usar sua influência branca e hétero para levar a discussão racial mais a fundo, mais holística. E como todo bom homem médio, ao defender Tom Robbins do crime de estupro acusado pela Mayella, limitou-se a pedir provas que ele mesmo não tinha: laudos médicos, posição do soco no rosto da vítima, se era destro ou canhoto, etc.

Tabu para a época principalmente numa sociedade paternalista, o incesto era impronunciável, por esse motivo abordado de forma rasa no julgamento. Mayella, órfã de mãe, não servia ao pai alcoólatra e violento apenas nos cuidados domésticos e dos irmãos: era sua escrava sexual. Mas para proteger o pouco de família que restava, ela, motivada por conveniente carência, encontrou no negro Tom Robbins seu bode expiatório. Nas palavras do pai quando viu Mayella tentando agarrar Robbins: “Sua puta, eu vou te matar”. Sim, ela era a “prostituta de luxo” do pai.

Mas isso era “irrelevante” para o desfecho do caso.

Atticus resolver responder canhões com flores, e de forma passiva com cheiro de pacífica, ia ensinando os filhos com conceitos humanizados genéricos: “não deseje o mal para ninguém, não odeie as pessoas, tenha empatia etc.”. Ele poderia ter ido mais longe com sua caneta, mas um cafuné na filha foi sua lição mais revolucionária.

Após defenderem Robbins, mesmo sem êxito, o advogado e sua família passam a ser perseguidos pela comunidade, encarando por alguns dias o ódio que os negros carregam há séculos. E é emblemática a perseguição às crianças na floresta, pois Scout está fantasiada de…presunto, simbolizando sua luta contra uma sociedade patriarcal, um mero pedaço de carne que luta para romper os estratos sociais.

Nessa perseguição, quem aparece para salvá-los de Bob Ewell? Boo Redley, isso mesmo! O Esquisito, anormal, marginalizado pela comunidade que vê nas diferenças a oportunidade de afirmarem sua supremacia.

Arthur Redley esfaqueia Bob, que vem a óbito. Louise espia de dentro da fantasia. O pedaço de carne espia de dentro do seu “lugar na sociedade” que Lee teima em infirmar. Boo leva Jem para casa, e só então começa a ser visto como pessoa. Até então era “essa gente”, como repetidas vezes aconselhava Atticus às crianças para que não o incomodasse.

Mas quando a salvação bate à minha porta, pode ser até vinda de um “desajustado maluco”.

Como paga por esse Lei de Talião, o delegado combinou com Atticus que Bob Ewell havia caído sobre a própria faca, inocentando Boo. Para que outro vilão branco, sendo que já haviam trocado de preconceito? De uma questão econômica (Ewell) por uma racial (Robbins).

A sociedade retrógrada alabamense, sem querer (ou não tanto), ao sentenciar Robbins à morte pelo meio “extralegal” como comumente eram chamados linchamentos e execuções, sentenciou Mayella também ao seu lugar na sociedade, e o silêncio de Boo faria com que as coisas permanecessem como sempre fora na pacata cidade de Maycomb.

Atticus, como seu nome aduz, esboçou um teatro com maquiagem de revolução, mas sob a velha roupagem do homem branco manobrando a sociedade para a manutenção dos privilégios, não questionando, inclusive, o próprio.

Uma leitura apressada do livro de Lee quase transige pelo heroísmo de Atticus, mas como ele acaba sendo vítima de sua própria máxima: “somente quando vestimos a pele dos outros, entendemos suas motivações”, não dá para chancelar esse pretenso estoicismo de quem acomodou-se em ver um pássaro morrendo, sem ao menos questionar a gaiola (sistema).

 

Referências

GLADWELL, M., 2009. Atticus Finch and the limits of Southern liberalism. Disponível em:  < http://www.newyorker.com/magazine/2009/08/10/the-courthouse-ring . >. Acesso em 15.set.2019

GUROVITZ, H., 2015. Atticus Finch, Plutão e a verdade. Disponível em: < http://g1.globo.com/mundo/blog/helio-gurovitz/post/atticus-finch-plutao-e-verdade.html >. Acesso em 15.set.2019.

LEE, H. O Sol é para todos. Editora Círculo do Livro, 27 ed., 350 p., 2006.

Imagem: São Tomé e Príncipe/Olavo Amado / O Menino nas Costas- Acrílico sobre tela – 2006

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