Com esse texto, continuamos a avaliar como o Brasil construiu a invisibilização da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Investigamos os 20 primeiros anos da CPLP nos dois maiores jornais brasileiros, Folha de S.Paulo e O Globo. Os últimos textos dessa coluna destacamos a ações de ausência e indiferença. Nesse aqui, vamos focar a diferença. Como sempre, trago exemplos em que a diferença é a palavra-chave para constituir uma comunidade lusófona invisível no Brasil.
O jornal Folha de S.Paulo, dias antes da oficialização da CPLP, publicou em sua edição de 14 de julho de 1996 a pequena notícia: “FHC formaliza em Lisboa novo bloco”. Esse registro apresenta uma série de marcas para construir a diferença entre Brasil e a CPLP. Uma primeira é o uso da expressão “formaliza”, que indica uma ação ativa do presidente do brasileiro. Contudo, lembremo-nos que o Brasil foi apenas uma entre as nações que assinaram a institucionalização da CPLP. Quando a Folha diz que “FHC formaliza” busca passar a impressão de que é ele quem a oficializa, ou seja, que tem o poder de fazer, diferente dos demais.
Um outro aspecto é de que esse jornal chama a CPLP de um “bloco”, e não de uma comunidade. O bloco é usado para definir o ajuntamento de países que se move por interesses econômicos. Diz o jornal que a CPLP “não chega a ser um bloco potente nem tem as ambições comerciais do Mercosul” (Folha, 14/07/1996, p. 6). Para a Folha, a impotência do “bloco” está no fato dele reunir apenas Brasil e Portugal e cinco países africanos de língua portuguesa, que sequer têm seus nomes citados na notícia. O Outro sequer é nomeado, mas está ali.
Há nesse registro da Folha um trecho em que o jornal deixa claro de como o Brasil, por meio da política externa, deveria lidar com a comunidade lusófona, reforçando a diferença, o comando e a distância identitária desse bloco: “a diplomacia brasileira sempre trabalhou com a tese de que o país não pode vincular-se preferencialmente a qualquer deles, mas tratar de ser um ‘global trader’ (literalmente, comerciante global)” (Folha, 14/07/1996, p. 6).
Ora, como é participar de uma comunidade e não se vincular a ela como membro? É porque não é comunidade, é “bloco”. As relações entre Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Portugal e Timor-Leste, além de outros países e regiões lusófonas, não é uma opção, mas um profundo encontro histórico e identitário irrevogável. A vinculação brasileira aqui é inevitável.
Além disso, essa presumida condição protagonista do Brasil, isto é, de criar um “novo bloco”, tem o objetivo de “buscar apoios para a candidatura do Brasil a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas” (Folha, 14/07/1996, p. 6). Somente aqui os membros dessa comunidade parecem ter algum valor, porque “contar com o voto de cinco países africanos de língua portuguesa é sempre um ativo importante para a diplomacia brasileira, por pobres e fracos que sejam” (Folha, 14/07/1996, p. 6).
É isso. O jornal apresenta o Brasil como o líder que comanda e vende um “bloco” de países pobres (que é “um ativo”) no mundo, e em troca dessa liderança, desse favor, busca os votos dos países lusófonos (“pobres e fracos”) para que ele tenha uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU. No restante dessa notícia não há nenhum sinal que leve o leitor suspeitar que entre esses países do “bloco” existem profundos laços históricos, identitários e constitutivos de uma comunidade.
Outro exemplo de notícia que buscou estabelecer uma nítida diferença entre o Brasil e os demais países da CPLP está na edição de 26 de julho de 2004 do jornal O Globo. O então presidente Lula foi à África para participar da conferência da CPLP em São Tomé e Príncipe. O título da notícia apresenta uma grande marca de diferença: “Lula chega à África no papel de primo rico”. Isto é, até podemos ter alguma relação de parentesco com os irmãos africanos, é o que reconhece esse jornal, mas nós somos os “ricos” e chegamos do “outro lado do mundo”, em que está o “primo pobre”.
Essa diferença acentuada, de forma extremamente visível no título da notícia, busca retirar o peso das falas diretas do presidente Lula nesse registro do jornal e que lembram as relações históricas e identitárias do Brasil com África, os escravos e as dívidas que temos e ainda não pagamos. Exatamente é essa a relação de diferença entre nós, os “primos ricos” e os africanos, os Outros, os “primos pobres” que também apareceu, literalmente, em uma notícia na Folha de S.Paulo em 18 de julho de 2000, envolvendo o presidente Fernando Henrique.
Em resumo, apesar de raras, as notícias sobre a CPLP e a lusofonia em duas décadas no Brasil, quando surgiam, algumas buscaram marcar uma espécie de diferença intransponível entre o Brasil e os demais países lusófonos, especialmente os da África e do Timor Leste. Além da ótica de ausência, de indiferença, também a diferença é uma marca consistente nesse processo de invisibilização da CPLP no Brasil. No próximo texto, concluímos essas bases abordando e trazendo nítidos exemplos de rejeição.