EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish
EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish

“O pior não é pertencer ao Sistema, mas ser ignorado por ele”: eu comento ou vocês comentam?

“O pior não é pertencer ao Sistema, mas ser ignorado por ele”: eu comento ou vocês comentam?

Pergunta direta aos leitores: o que vocês acham de filmes como “Lagaan: Era Uma Vez na Índia” (2001, de Ashutosh Gowariker), “Zelary” (2003, de Ondrej Trojan), “Ajami” (2009, de Yaron Shani & Scandar Copti), “Bulhead” (2011, de Michaël R. Roskam) e “Tanna” (2015, de Martin Butler & Bentley Dean). Ainda que pareçam desconhecidos, todos eles foram indicados à categoria de Melhor Filme Internacional (antes Melhor Filme Estragheiro) no Oscar. E, depois de ficarem em evidência por alguns meses, sequer chegaram a ser adequadamente distribuídos nos cinemas. Em muitos casos, somente os cinéfilos mais abnegados os conferiram…

A pergunta supracitada veio à tona porque, quando a lista de indicados ao Oscar 2021 foi publicizada, houve uma corrida para conferir o máximo de indicados possíveis. E, mais uma vez, na categoria Melhor Filme Internacional, alguns filmes perigam ficar alijados do grande público. É o caso do extraordinário longa-metragem bósnio “Quo Vadis, Aida?” (2020, de Jasmila Zbanic) e da medíocre produção de Hong Kong “Better Days” (2019, de Kwok Cheung – ou simplesmente Derek – Tsang).

O favorito absoluto à consagração é o dinamarquês “Druk – Mais uma Rodada” (2020, de Thomas Vinterberg – também indicado ao prêmio de Melhor Direção), enquanto o romeno “Colectiv” (2019, de Alexander Nanau) despontou, desde o início, como um dos principais nomeados na categoria Melhor Documentário. Completa a lista um longa-metragem indicado pela Tunísia, chamado “O Homem que Vendeu Sua Pele” (2020, de Kaouther Ben Hania). E é sobre ele que passaremos a falar agora…

Não obstante já ter sido exibido no Festival de Veneza e de receber a atenção positiva de alguns críticos, este filme surge quase como um contra-exemplo nessa lista, havendo a possibilidade de ele ser tão desprestigiado pelo público, com o passar do tempo, quanto os títulos mencionados no primeiro parágrafo. Afinal, é um filme que não sustenta as intenções pretensamente denuncistas do pasticho greenawayniano de seu roteiro: chega a parecer uma comédia involuntária, em mais de um momento!

Partindo de um inusitado caso real, a diretora Kaouther Ben Hania conta a saga de Sam Ali (Yahya Mahayni), um habitante da cidade de Raqqa que é separado de sua pretendente Abeer (Dea Liane) por causa da guerra civil que assola a Síria. Enquanto ela é obrigada pela família a casar com um diplomata que vive na Bélgica, ele foge para o Líbano, onde trabalha numa granja, separando os pintinhos adequados para a posterior comercialização no mercado de frangos.

Sobrevivendo como refugiado ilegal, Sam costuma freqüentar exposições de arte, a fim de poder alimentar-se gratuitamente nas recepções luxuosas. Coincidentemente, num momento azado, ele conhece Soraya (Monica Bellucci), a agente de um conceituado artista que vive justamente na Bélgica. Este fica fascinado por Sam, apresentando-se como uma espécie de Mefistófeles, e propõe tatuar algo em suas costas. Ele aceita. E viaja para a Europa, como se fosse uma obra viva do referido artista, chamado Jeffrey Godefroi (Koen De Bouw)…

Diversas confusões acontecerão a partir daí: as tentativas de conversar com Abeer são dificultadas pelo marido dela, que é bastante ciumento; Sam é cooptado por uma organização que apregoa a liberação da Síria, e que insiste que ele é explorado enquanto mercadoria artística; e, como conseqüência extrema de uma briga que ocorre nas dependências do museu, Sam finge que possui uma bomba em mãos, aproveitando-se dos preconceitos locais contra a sua aparência. Como de praxe, muitos europeus pensam que ele é um terrorista. O filme é uma crítica eficaz contra a xenofobia?

A última pergunta não será respondida. Afinal, são inúmeras as críticas que evidenciam-se no roteiro escrito pela própria diretora, com base numa questionada obra conceitual do artista Wim Delvoye – que costumava efetivar tatuagens semelhantes na pele de suínos, até encontrar um modelo humano –, cujas peças aparecem no filme, como representações dos trabalhos de Jeffrey. Tal como ocorre em “O Livro de Cabeceira” (1996, de Peter Greenaway), há um pertinente debate acerca das implicações éticas envolvendo o uso da pele humana enquanto tela. Se, no filme britânico, isso ocorre sob o pretexto de uma disputa erótica, na produção tunisiana (em associação com diversos outros países), há um acúmulo de quiproquós que beiram a comicidade estulta, de modo que podemos traçar um paralelo com “The Square – A Arte da Discórdia” (2017, de Ruben Östlund), que também chegou a ser indicado a Melhor Filme Internacional, além de ter recebido uma controversa Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes…

Fotografado de maneira inteligente – quase sempre realçando o efeito de duplicidade e/ou especulação imagética, à la Brian De Palma – e musicado com esmero por Amine Bouhafa, este filme chega a ser vexatório na consecução de suas intenções, sobretudo por causa da interpretação desengonçada do protagonista. Os diálogos chegam a ser risíveis, bem como as situações estapafúrdias que circundam a metáfora do visto internacional tatuado nas costas do personagem-título. Como este filme será lembrado daqui a alguns anos? Eis um desafio interrogativo que deve ser observado, no sentido de que, graças ao caráter mui competitivo do Oscar, indicados modestos tendem a ser francamente obnubilados. Não sei se cabe adjetivar a referida obra nesse texto, mas, da parte deste que vos escreve e respeitando-se o saudável dissenso em relação a quem discorda, “O Homem que Vendeu Sua Pele” é um filme constrangedoramente ruim. Mas deve (e merece) ser visto. Na pior das hipóteses, é útil enquanto confirmação ressabiada de uma tese. Urgh!

Wesley Pereira de Castro.

Descarregar artigo em PDF:

Download PDF

Partilhar este artigo:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
LinkedIn
Share on email
Email

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado.

LOGIN

REGISTAR

[wpuf_profile type="registration" id="5754"]