No dia 08 de fevereiro de 2022, uma terça-feira, cinéfilos de todo o mundo aguardaram com ansiedade o anúncio dos indicados ao Oscar, principal premiação da indústria hollywoodiana, cuja nonagésima quarta edição ocorre em 27 de março do referido ano. Conforme esperado, “Ataque dos Cães” (2021, de Jane Campion – resenhado aqui) recebeu a maior quantidade de indicações, doze, e tudo indica que será consagrado nas principais categorias.
O segundo filme mais indicado, a superprodução “Duna” (2021, de Denis Villeneuve), mencionado em dez categorias, é o favorito para receber os prêmios técnicos, mas não foi indicado a Melhor Direção, o que causou certo rebuliço jornalístico. Afinal, as ausências e os esquecimentos nessa lista são tão ou mais relevantes que as próprias nomeações. E, neste ano, a manchete mais repercutida foi a não inclusão da cantora Lady Gaga entre as indicadas a Melhor Atriz, pelo filme “Casa Gucci” (2021, de Ridley Scott), deveras malquisto pelos críticos.
Na categoria Melhor Filme Internacional, o favorito absoluto é o japonês “Drive My Car” (2021, de Ryûsuke Hamaguchi – ver resenha aqui), também indicado a Melhor Filme, Melhor Direção e Melhor Roteiro Original. Para muitos espectadores, a não indicação do filme iraniano “Um Herói” (2021, de Asghar Farhadi) foi surpreendente, já que ele foi lembrado em diversas listas de melhores do ano, além de ter recebido o Grande Prêmio no Festival de Cannes. Vale ressaltar que este cineasta já recebeu dois prêmios Oscar de Melhor Filme Internacional, pelo excelente “A Separação” (2011) e pelo mediano “O Apartamento” (2016).
Protagonizado pelo eloqüente Amir Jadidi, “Um Herói” conta a história de um presidiário, chamado Rahim Soltani, que recebe uma licença de dois dias, visita alguns parentes e tenta resolver a situação que fez com que ele fosse preso. Sobremaneira endividado, Rahim requereu um empréstimo avultoso a seu ex-cunhado, e não conseguiu pagar. Durante o período da licença, ele descobre que a sua namorada Farkhondeh (Sahar Goldoost) encontrou uma bolsa com várias moedas de ouro num ponto de ônibus, e cogita vendê-las para saldar a sua dívida e não voltar para a prisão. Mas ele muda de idéia no derradeiro instante…
Como sói acontecer na filmografia asghariana, uma decisão moral fortuita gera um cabedal de reações e consequências, de modo que os personagens são sufocados pela pletora de opiniões e julgamentos alheios. De tão obcecado que é por esta fórmula roteirística própria, Asghar Farhadi faz com que seus filmes sejam reconhecidos como pertencentes a um subgênero mui particular, em que a revelação de mentiras e segredos engendra confusões difíceis de serem solucionadas, visto que, cada qual à sua maneira, todos os personagens têm razões lícitas para (re)agirem aos dilemas apresentados. É o que acontece também aqui!
Ao invés de vender as moedas de ouro, como ele e Farkhondeh pretendiam, Rahim decide buscar a dona da bolsa. Como ele é obrigado a voltar para a prisão, incube a sua irmã Malileh (Maryam Shahdaei) da função de entregar a bolsa, tão logo a proprietária seja identificada. Ocorre que isso chama a atenção da imprensa local, que converte Rahim num modelo de respeitabilidade, a ponto de ele receber apoio de uma organização filantrópica e ser convocado para entrevistas televisivas. É apenas o começo de variegadas confusões, envolvendo sobretudo o credor do protagonista, que não acredita em sua reabilitação.
Quem está acostumado ao estilo do diretor, sabe o que encontrará neste filme: uma série de reviravoltas, que mergulham Rahim num turbilhão cada vez mais irreversível de perseguições, o que é dificultado por seu caráter eventualmente explosivo, pelo sobejo de exposição nas mídias sociais e pelo fato de que o namoro entre ele e Farkhondeh não é permitido pelos parentes dela. Apesar de focalizar os aspectos citadinos (e abarcados pela globalização capitalista) da sociedade iraniana, as pressões e proibições sofridas pelas mulheres estão sempre em evidência nos filmes deste cineasta, que tem entre os seus trabalhos mais interessantes o sufocante “Procurando Elly” (2009), que conjuga drama e suspense em iguais medidas.
Se, por um lado, merecem elogios as rebuscadas urdiduras de seus roteiros, em que as questões honoríficas são nodais, por outro, pode-se reclamar que o estilo deste cineasta é um tanto formulaico. Mas ele não é displicente no modo como conduz as interpretações ou como enquadra os vazios decorrentes de nossas escolhas mais íntimas (vide o que ocorre na seqüência final). Neste filme mais recente, o diretor serve-se de uma montagem elíptica, com vários cortes que dificultam a identificação de quanto tempo é decorrido entre as ações. Numa das primeiras cenas, Rahim reclama da quantidade de andaimes que precisa subir para encontrar o marido de sua irmã, na esperança por encontrar um emprego; numa rima visual invertida, Farkhondeh desce as escadas de seu prédio de maneira tensa, escondendo a bolsa que encontrara. A frase que aparece no título deste artigo é pronunciada por um taxista, também ex-presidiário, que opta por ajudar Rahim, ao identificar-se com a sua trajetória de detenção. As boas intenções, entretanto, nem sempre são suficientes para solucionar os problemas: afinal, as mencionadas injustiças são estratégias programadas de manutenção ideológica. Deus não é reverenciado na epígrafe do filme por acaso!
Wesley Pereira de Castro.
2 respostas
Muito bom o texto.
Nós nunca sabemos quais os critérios que de fato fazem ou habilitam uma obra fílmica ou diretor à serem elegíveis à concorrer ao referido prêmio. Por mais que a instituição tenha se (es)forçado em atender ao contexto do politicamente correto em termos de visibilidade a minorias e diversidades, há sempre uma cortina de fumaça quando situações como estas relatadas no texto acontecem.
Muito obrigado pelo comentário.
e, sim, mesmo que os critérios de indicação não sejam prioritariamente “qualitativos”, continuo achando esta cerimônia sociologicamente relevante. Falta voltar a ser cinefílica, né? A paixão pelos filmes em si – que caracterizou a Hollywood da fase de ouro – foi secundarizada, mas também acho muitíssimo importante prestar atenção aos clamores de nosso tempo.
Lidar com as contradições apreciativas é algo essencial em todas as áreas, afinal!