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“Minha mãe herdou essa casa de sua mãe. E eu, dela”: a maternidade enquanto condição política – e também elemento classista!

“Minha mãe herdou essa casa de sua mãe. E eu, dela”: a maternidade enquanto condição política – e também elemento classista!

Pouco antes de estrear no Festival Internacional de Cinema de Veneza, “Mães Paralelas” (2021), o mais recente filme do cineasta espanhol Pedro Almodóvar foi acompanhado por um polemismo típico da contemporaneidade: seu cartaz inicial foi excluído do Instagram (mas logo recuperado), por associação aparente à impudicícia. Tratava-se da imagem de um mamilo feminino derramando uma gota de leite, numa ilustração que remete a um olho chorando, diante de um fundo vermelho. Os elementos mais reconhecidamente almodovarianos estavam evidentes, o que deixou seus fãs em polvorosa: o gênio transgressor estava de volta!

Apesar de ter sido agraciado com um prêmio de Melhor Atriz para Penélope Cruz, a recepção crítica ao filme foi acanhada: mais uma vez estranhou-se o envelhecimento do cineasta, a sua imersão explicitamente política (em sentido histórico), as relações sexuais um tanto comportadas. Um novo cartaz mostrava um abraço entre as duas atrizes principais, em que linhas geométricas eram sobrepostas sobre elas (verticais, numa das mulheres; horizontais, na outra). O fundo permanecia vermelho, obviamente. Pedro Almodóvar é um autor!

Se, em sua filmografia, é mui reconhecida a importância das figuras circulares – e por extensão, das trajetórias cíclicas que justificam o sobejo de acasos tramáticos – aqui, a figura geométrica que melhor simboliza o roteiro é um poliedro, ou seja, “a reunião de um número finito de polígonos, chamados de faces”. A estrutura rizomática cara ao realizador permanece ostensiva: do acompanhamento de uma personagem, escolhida como protagonista, passa-se ao cotidiano de outra, que, mesmo coadjuvante, assume também a função de protagonista, ainda que momentaneamente. Nas relações multifacetadas que são estabelecidas entre as pessoas, a unilateralidade é evitada em suas limitações elementares: “tu complicaste demais as coisas”, percebe alguém em determinado momento.

Em tese, alguns aspectos do enredo podem ser rapidamente adivinhados: na primeira seqüência, Janis (Penélope Cruz) fotografa o antropólogo forense Arturo (Israel Elejalde) para uma revista. Aproveitando a oportunidade, ela o consulta acerca de uma questão pessoal, a vontade de desenterrar os restos mortais de seu bisavô, aprisionado e desaparecido durante a Gurra Civil Espanhola. Janis tem certeza de que a ossada de seu parente está enterrada no povoado em que viveu, junto aos ancestrais de vizinhos, também assassinados pelos falangistas. Arturo resolve ajudá-la, e é óbvio que terão um envolvimento sexual…

Para quem adentra a sessão ciente do que é descrito na sinopse, fica antecipado que Janis engravidará e, na maternidade, conhecerá uma adolescente também prestes a parir, Ana (Milena Smit). Ambas conversarão e, a posteriori, se reencontrarão, numa conjuntura que fará com que Janis conheça mais a fundo a mãe de sua amiga, Teresa (Aitana Sánchez-Gijón), uma atriz que se declara apolítica. Janis compreende que isso desencadeou um posicionamento semelhante em Ana, que evita preocupar-se com o passado, ignorando totalmente o que aconteceu durante o franquismo. É o pretexto motivacional para que a trama fique cada vez mais complexa!

Após a descoberta da relação conturbada entre Ana e Teresa, Janis convida a primeira para viver consigo, trabalhando como uma espécie de babá, e ouvimos o relato das condições desagradáveis em que Ana engravidou. Muitos elementos dramáticos já foram trazidos à tona quando isso ocorre, e muito mais ocorrerá, sendo que, na tessitura almodovariana de destinos, as revelações chocantes são ainda menos contundentes que o modo como elas surgem. Ao final, uma citação do escrito uruguaio Eduardo Galeano [1940-2015] reitera que “não existe História muda”: os eventos soterrados pela malevolência dos ditadores clamam para que sejam urgentemente perscrutados!

De fato, quem espera encontrar neste filme a esculhambação magistral do início da carreira do diretor talvez se decepcione um pouco: os comportamentos estão mais reservados e os personagens são beneficiados por condições favoráveis de classe. “Dinheiro nunca foi problema”, diz a personagem Teresa em mais de uma oportunidade. E uma das características mais reconhecíveis do diretor é ressignificada, a hipernarrativa, geralmente evidenciada através de cenas inseridas de algum filme alheio, que ajudava a desvendar aspectos ocultos da trama. Aqui, isso ocorre através da canção “Summertime”, na voz de uma cantora determinante para o batismo da protagonista: “minha mãe era ‘hippie’ – e, tal qual Janis Joplin, morreu de overdose aos vinte e sete anos de idade”. Ana, entretanto, não sabia de quem se tratava, mas serve-se dessa conversa reveladora para entregar-se a algo que demonstra que “o Almodóvar de antigamente” envelheceu, mas não abandonou os seus hábitos prazenteiros!

Outros aspectos de maturação estilística e discursiva, percebidos neste filme: a cor vermelha segue onipresente, mas não é central, e sim periférica. O amarelo aparece em iguais e acachapantes medidas e os personagens são, em sua maioria, profissionais consagrados. O que não quer dizer que o diretor seja condescendente em relação aos pantins de quem foi criado sob o comodismo direitista: ele crê na (re)educação através da consciência política, o que sempre foi acessório em seus filmes [vide os chistes envolvendo terroristas em “Labirinto de Paixões” (1982) ou as críticas frontais ao autoritarismo religioso da Opus Dei em “A Lei do Desejo” (1987) e “Ata-me!” (1989)], mas que ficou explícito a partir de “Carne Trêmula” (1997) e seu desfecho epocalmente comparativo.

Dirigido de maneira excelente e protagonizado por um elenco adulto (em mais de um sentido para o adjetivo), “Mães Paralelas” oferta aos admiradores do cineasta a adesão a temáticas sobremaneira amplas, em que os dilemas íntimos dos personagens têm a ver com as questões nacionais. Em dada situação teleológica, numa seqüência de forte impacto emocional, Arturo olha para um grupo de mulheres empunhando fotografias familiares e, como se também se dirigisse a nós, espectadores, diz: “vamos nos retirar um pouco, esse momento é de vocês”. O filme é sobre esse interstício compartilhado, enquanto recurso pedagógico-narratológico não desprovido de erotismo!

Wesley Pereira de Castro.

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