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“Homens não costumam usar o banheiro em bares” (e/ou tergiversações sobrevivenciais do gênero)

“Homens não costumam usar o banheiro em bares” (e/ou tergiversações sobrevivenciais do gênero)

Apesar de ter sido ignorada nalgumas premiações, a telessérie “I May Destroy You”, da HBO, revelou-se um grande sucesso de crítica hodierno, tendo merecido o prêmio de Melhor Roteiro recebido no Emmy, além de outras láureas. Criada, protagonizada e eventualmente dirigida por Michaela Coel, esta telessérie de 2020 é genial pelo modo como serve-se de estratagemas editoriais para falar sobre traumas de estupros e/ou vice-versa: a catarse convertida em narrativa(s) destaca-se pela pluralidade de leituras e pelas aberturas ao enfrentamento não dogmático (apesar das aparências em contrário). Trata-se de uma poderosa aula de autocrítica identitária, temperada com o mais urgente dos feminismos, o racial!

A narradora da série, Arabella, é praticamente onipresente: representada com muita pujança pela supracitada Michaela Coel – já que é uma espécie de alter-ego –, ela é descolada e extrovertida. Porém, revela-se progressivamente insegura, à medida que os episódios avançam. Depois de publicar um livro de sucesso, baseado em crônicas inspiradas por sua participação ativa nas mídias sociais, Arabella enfrenta uma crise de criatividade em relação ao seu novo trabalho. Durante uma noitada com amigos, ela é estuprada enquanto estava inconsciente, o que desencadeia problemas relacionais que obrigam-na a revisitar o passado. De repente, ela percebe que esconder o que lhe desagrada é muito menos efetivo que reviver o choque provocado pelas feridas ainda abertas…

Não obstante a série captar em minúcias o ponto de vista de Arabella e seu peculiar modo de encarar o mundo, ela não é mostrada como ilibada ou dona da razão (ainda que aja como tal em várias oportunidades): Arabella erra bastante ao longo dos doze episódios – nos dois sentidos do verbo –, de modo que a conclusão da série evita uma perspectiva unívoca. Há diversos desfechos possíveis, de modo que cada espectador possa escolher um sem abandonar os outros. Afinal, de acordo com o roteiro, as contradições não se anulam, mas complementam-se: é através dos erros que a protagonista tem os seus maiores rompantes de criatividade!

Em determinado momento, após algumas interessantes guinadas tramáticas, a série parece problematizar o próprio modo como o enredo carece de fórmulas de desenvolvimento literário para revelar-se funcional. Na maior parte do tempo, entretanto, direção e montagem emulam os recursos permutáveis da linguagem cibernética, fazendo com que os cacoetes formais do Instagram invadam a tela: Arabella comunica-se com muitas pessoas como se fosse uma “justiceira do Twitter”, explicando e incentivando práticas controversas como o ‘doxing’, que consiste na divulgação de informações privadas de alguém, como forma de vingança expositiva. A catarse que a personagem busca é outra, felizmente.

Comumente acompanhada por seus dois melhores amigos, a atriz Terry (Weruche Opia) e o dançarino Kwame (Paapa Essiedu), Arabella é mostrada em muitas festas e gozando de benefícios aquisitivos associados à sua profissão: ainda que precise pedir para seu companheiro de moradia “cobrir o aluguel” em dado instante, suas maiores preocupações financeiras são alugar fantasias exuberantes para o Halloween, conseguir passagens de avião para a Itália e montar uma festa-surpresa para sua amiga aniversariante. O que não quer dizer que ela seja fútil, muito pelo contrário, mas que lida apenas com aquilo a que tem acesso. A fome na África – continente do qual ela advém, visto que sua origem é ganense – surge como mote auto-hipnótico, a fim de esquecer o mal-estar decorrente do abuso sexual que sofre. Mais uma vez, percebemos a concepção desta complexa personagem como atravessada por inúmeras autocríticas: quem é que não erra?

Se, no episódio inicial (“Eyes, eyes, eyes, eyes”), ficamos completamente seduzidos pela potência ativa de Arabella, noutros momentos, sentimos raiva do modo arrogante como ela trata as pessoas, o que chega ao paroxismo no nono capítulo, “Social Media is a Great Way to Connect”, em que ela anda pelas ruas utilizando uma fantasia de demônia, com seu telefone celular à mostra, denunciando toda e qualquer pessoa – geralmente, homens brancos e heterossexuais – de quem discorda. Até que ela precisa confrontar seus estupradores – e o modo como isso ocorre é surpreendente!

Conforme acostumamo-nos em relação ao “padrão HBO de qualidade”, não é uma telessérie para ser maratonada: é preciso respirar após um e outro episódios, de tão densas que são as situações apresentadas. Por isso, há elipses marcantes de alguns meses entre cada um deles, exceto nos dois últimos, que são contíguos. Além das dores e paixões de Michaela, acompanhamos as indecisões de seus amigos, que também cometem e sofrem abusos. Os coadjuvantes são excelentemente interpretados e, por mais que possa-se reclamar de certo aburguesamento comportamental na desenvoltura urbana destes típicos personagens londrinos, as questões identitárias são abordadas com inteligência, seja no que diz respeito ao machismo involuntário de um homossexual negro que finge se apaixonar por uma mulher branca, seja nos dilemas morais do traficante italiano (Marouane Zotti) com quem Arabella se envolve romanticamente. Repetimos a pergunta-chave: quem é que não erra?

A dinâmica existente no seriado entre a celeridade rítmica e as tensões múltiplas das tramas interligadas tem tudo a ver com o que o filósofo francês Gilles Lipovetsky definiu como hipermodernidade, “cultura paradoxal que combina o excesso e a moderação”, um tipo de hedonismo específico da atualidade, em que os prazeres do tempo da infância são amplamente requisitados. Continua o autor, em sua definição, a partir de uma entrevista publicada em 2004: “as mídias tornam-se cada vez mais radicais porque é preciso conquistar audiência, mas, ao mesmo tempo, existem normas – como o respeito aos direitos do homem, os valores éticos, a saúde e o amor – que não deixaram de existir e que continuam a orientar o comportamento de grupos e indivíduos”. É mais ou menos o que ocorre com Arabella, Terry e Kwame nesta telessérie excepcional, cujo maior mérito é extrair toda a potência expressiva que jorra de seus defeitos estruturais. Super-recomendada, portanto!

Wesley Pereira de Castro.

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