Como só acontecer ao final de cada ano, os cinéfilos de todo o mundo preparam as suas listas com os melhores filmes vistos e programam-se quanto ao que estreará no ano vindouro. Como apanágio dos tempos hodiernos, sob a égide da “cultura da convergência”, os prognósticos pra 2020 soam desalentadores para os amantes das inovações em Sétima Arte: regravações, continuações, variações e translações destacam-se entre os lançamentos anunciados. Praticamente monopolizam os anúncios, em verdade. De modo que uma pergunta retórica é formulada: quando as fórmulas esgotarem-se, haverá ainda cinema?
A resposta a tal questionamento retórico é pragmática – e encontra na safra de filmes lançados em 2019 um cabedal alvissareiro, visto que este derradeiro ano da segunda década do século XXI ofereceu-nos um riquíssimo cardápio de filmes, onde a política é apresentada de maneira orgânica, integrada a enredos corriqueiros ou metonimizada em tramas com aproveitamento mitológico. Cinema é também resistência, portanto!
Um dos últimos lançamentos deste ano merece análise pela envergadura noticiosa que desencadeou: desde o seu anúncio produtivo, “Star Wars – Episódio IX: A Ascensão Skywalker” (2019, de J. J. Abrams) era cercado de intensa expectativa, pois punha fim a uma saga com quarenta e dois anos de existência. Mas o capítulo final decepcionou muitos fãs. Motivo: é inautêntico, apenas repisa a alternância de motes heróicos vistos anteriormente. Ou seja: é um filme vazio, ainda que não necessariamente ruim…
Dando prosseguimento aos eventos desta terceira trilogia, acompanhamos a evolução espiritual de Rey (Daisy Ridley) em direção à sua conformação ‘jedi’, enquanto seus companheiros de equipe, Finn (John Boyega) e Poe (Oscar Isaac), somam-se aos esforços lutadores comandados por Leia Organa (Carrie Fischer, falecida em dezembro de 2016). Intencionalmente, o roteiro mostra a confluência de uma série de ações integradas com vistas à derrota do vilão Kylo Ren (Adam Driver), mas o trabalho do próprio diretor, ao lado de Chris Terrio, na confecção dos diálogos e situações deste filme beira o ridículo. Não se define entre convenções de desenho animado, ritmo acelerado de filme de ação e pasticho romântico. É um filme extremamente disrítmico, infelizmente.
Se, por um lado, a esperada redenção de Kylo Ren engendra alguns interessantes ecos emocionais com a trilogia original, no que diz respeito ao elã advindo da Força, por outro, os pretensos clímaces aventureiros soçobram por causa de sua exagerada previsibilidade: desde o início, sabe-se que tudo dará certo ao final. Para piorar, o verdadeiro vilão do filme – que revela-se como uma reencarnação do Chanceler Palpatine (Ian McDiarmid) – é um tagarela contumaz, ameaça Rey por tempo suficiente para que ela obtenha reforços holísticos e o destrua. Um paradoxo mal-explicado pelo roteiro é que essa destruição de Palpatine era justamente o que ele ambiciona enquanto plano para contaminar sua opositora com o lado sombrio do poder, mas isso não ocorre. E o beijo interditado que se segue emula o mais canhestro dos contos de fadas. A produtora Disney evidencia o seu potencial contaminante, afinal.
Ao longo dos 142 minutos de projeção, não há ineditismo em “Star Wars – Episódio IX: A Ascensão Skywalker”: toda e qualquer cena parece uma variação piorada de algo visto na trilogia original, numa tendência geracional demarcada pela homogeneização formal levada a cabo pela plataforma Netflix, que serve de boas referências cultuadas para anulá-las via imitação tecnologicamente aprimorada. Mas não há alma nestas cópias. Por isso, quando o atabalhoado andróide C-3PO (dublado por Anthony Daniels) insiste na lógica da amizade como sendo basilar para o sucesso das missões de sua equipe, isso é displicentemente percebido. Não há sentimentos legítimos no filme, mas uma litania de clichês a serem cumpridos.
Tendo a sua sinopse protegida até a época de seu lançamento, este é o tipo de filme que difundiu a problemática noção de ‘spoiler’, vazamento informativo que, ao ser divulgado, estragaria por completo o prazer espectatorial. Motivo: o enredo é centrado em surpresas epidérmicas, e não no encadeamento de fatos ou na construção de personagens, de modo que, caso informássemos aqui que Rey é, em verdade, neta do Chanceler Palpatine (e não uma descendente dos Skywalker, conforme se esperava), isso poderia desencadear uma série de reclamações por prejuízo imersivo para quem ainda não viu o filme. Após a sessão, por sua vez, perguntamo-nos: isso realmente faz diferença?
Sendo patente a decepção provocada por este nono capítulo de uma saga que, quando surgiu em 1977, revolucionou o cinema – segundo muitos críticos, para pior, visto que desencadeou a verve pelos arrasa-quarteirões – reaprendemos uma valiosa lição cultural: o teor apocalíptico muitas vezes não está nas obras em si, mas no olhar viciado que destina-se às mesmas. Pois, enquanto esta irregular odisséia intergaláctica era exibida, muitos outros filmes eram esmagados por sua onipresença midiática e pela ocupação massiva das salas. Há muitos ótimos filmes prestes a serem lançados em 2020 e nos anos posteriores. Retreinemos o nosso olhar e mantenhamos aceso o sabre-de-luz da sensibilidade!



