EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish
EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish

“É preciso uma guerra revolucionária contra a guerra imperialista para acabar de vez com a Guerra” (à guisa de manifesto)

“É preciso uma guerra revolucionária contra a guerra imperialista para acabar de vez com a Guerra” (à guisa de manifesto)

Apesar de ter consolidado sua carreira no Rio de Janeiro, o cineasta Neville Duarte de Almeida nasceu em Minas Gerais. Quis uma coincidência regional e classista que ele se tornasse amigo do controverso deputado Aécio Neves da Cunha, para quem fez campanha política em 2014, quando ele concorreu à presidência da República do Brasil. Na referida campanha, o cineasta afirma que “Aécio pode promover as mudanças que o Brasil precisa”, em razão de ser alguém “jovem, moderno, evoluído e diferente, com grande paixão e grande sensibilidade social”

Quem assiste aos filmes do diretor, permeados pelo ímpeto libertário, e descobre esta aliança política, justificada por laços afetivos sobremaneira íntimos, tende a ficar chocado, no sentido de que os baluartes do partido ao qual Aécio Neves é filiado [PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira] vão de encontro ao que é apregoado pelos personagens nevilleanos. Será mesmo?

Ao analisarmos depuradamente as suas obras mais famosas, percebemos que uma tendência ao oportunismo é recorrente nos enredos que ele filmou, sendo o diretor enciclopedicamente reconhecido pela acachapante bilheteria alcançada pelo clássico erótico “A Dama do Lotação” (1978), baseado em conto do polêmico escritor Nelson Rodrigues [1912-1980].

Preferências eleitorais à parte, o fato é que Neville D’Almeida é, sim, um cineasta muito competente, tendo sofrido bastante com as perseguições decorrentes da censura ditatorial. Isso não fez com que ele se demonstrasse resignado, entretanto: seus longas-metragens mais recentes, “Navalha na Carne” (1997) e “A Frente Fria que a Chuva Traz” (2015), demonstram que ele permanece fiel aos seus princípios narrativos, seja no que tange às adaptações teatrais com personagens incompreendidos e marginalizados, seja no que diz respeito à confrontação com o moralismo dominante. Cada qual a seu modo, são roteiros que defendem uma idéia muito própria de inconformismo (ainda que tolhida por fatores externos)!

No fulgor de seus oitenta anos de idade, Neville D’Almeida esteve disposto a comparecer num cinema de rua, na pequena cidade nordestina de Aracaju – capital de Sergipe, menor Estado do Brasil –, onde, na noite de 11 de dezembro de 2021, apresentou o seu primeiro longa-metragem para um platéia entusiasmada. Tratava-se de “Jardim de Guerra” (1968), filme atualmente exibido em sua integralidade, mas que foi tolhido pela Censura, que exigiu que o diretor concordasse com a retirada de seqüências importantíssimas, quando o filme tentou ser lançado, em 1970. Dentre estas, o discurso mui apaixonado proferido pelo ator Antônio Pitanga, que vocifera contra o racismo e profere o brado que intitula este artigo…

Co-escrito pelo músico Jorge Mautner, “Jardim de Guerra” é um filme pioneiro em inúmeros pressupostos: lidando com questões que ultrapassavam a alçada do Cinema Novo (já não havia mais a crença numa solução idealizada para os problemas do Brasil), este filme é protagonizado por um rapaz de nome Edson (Joel Barcellos), que deambula pela cidade, em busca de conquistas românticas e/ou qualquer coisa que justifique a necessidade de seguir em frente. Quando testemunha um acidente automobilístico, rouba a pulseira usada por uma mulher falecida e decide entregá-la a uma moça por quem alega estar apaixonado. Ela ignora os seus chamados, entretanto. Fazendo o sinal católico da cruz, Edson atira a pulseira no mar. E continua caminhando…

Casualmente, ele encontra uma jovem que anda pelas ruas com uma câmera, pois deseja ser cineasta. Interpretada com muita simpatia por Maria do Rosário Nascimento e Silva [1949-2010], esta aprendiz de diretora faz com que Edson passe a refletir acerca de suas opiniões políticas, sem muito êxito. Ele continua a considerar-se “nem de esquerda nem de direita”, como dirá a posteriori, num interrogatório anunciado desde a seqüência de créditos iniciais. Ansioso por obter dinheiro, Edson aceitará um serviço proposto pelo agiota interpretado por Paulo Villaça, e será preso por conta disso. Seguem-se os procedimentos típicos do poder coercitivo naquele período: tortura, contradições religiosas, patriotismo questionável e a determinação de que, para que uma nação possa ser bem-sucedida, ela precisa praticar concomitantemente o terror e a virtude, deixando claro que, administrativamente, um não se sustenta sem o outro.

Durante uma conversa em que repete jargões de caráter fanoniano, Maria afirma que, num mundo atravessado pelos conflitos sociais, ninguém pode ser considerado inocente, o que é repetido por um dos interrogadores (interpretado por Hugo Carvana), numa conjuntura que demonstra que, dentro de lógicas invertidas, partidários de ideologias radicalmente opostas utilizam exatamente as mesmas frases. E essa parece ser a tônica dominante do roteiro: em dado momento, quando incitado a fugir, Edson pergunta-se “e adianta a gente escapar?”. A resposta ecoa algo ainda hoje defendido por Neville D’Almeida: “adiantar, não adianta. Mas é sempre um ato”!

Reagindo ao extraordinário filme que é “Jardim de Guerra”, os espectadores aracajuanos interrogaram o seu diretor, inclusive questionando a sua filiação ao político Aécio Neves. O cineasta afirma que “há questões na política brasileira em que o artista está acima disso”. Acrescenta que “cinema é o império da hipocrisia” e declara que “a ferramenta do artista é a liberdade”. Contradiz-se nalguns momentos, mas sabe aproveitar com habilidade um ditado anglofílico utilizado por seu amigo, que é odiado pela cinefilia crítica: ‘people change’ (sic).

O roteiro é premonitório em muitos aspectos, passados mais de cinquenta anos desde a sua realização – vide o discurso certeiro e denuncista da interrogadora vivida por Dina Sfat [1938-1989], que menciona as traições de gênero sofridas pelas guerrilheiras argelinas. É um filme esplêndido, que vai muito além das alianças questionáveis de seu realizador. Obras de arte são muito mais subversivas por si mesmas que as intenções de seus artífices humanos!

Wesley Pereira de Castro.

Descarregar artigo em PDF:

Download PDF

Partilhar este artigo:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
LinkedIn
Share on email
Email

LOGIN

REGISTAR

[wpuf_profile type="registration" id="5754"]