Ainda que não haja nenhuma obra-prima em competição, a safra de filmes indicados ao principal prêmio hollywoodiano, como de praxe, diz muito sobre os temas políticos e causas socioeconômicas em evidência no panorama midiático hodierno: dentre os dez títulos nomeados à categoria principal, discursos importantíssimos atravessam cada um deles – para o bem ou para o mal, a depender de quem esteja analisando. Vide a tendência formulaica ao fascismo que se disfarça através da perseguição a bodes expiatórios, no hediondo “Wicked — Parte 1” (2024, de Jon M. Chu), ou a potência suplantada por declarações mui problemáticas dos envolvidos na produção do extraordinário “Emilia Pérez” (2024, de Jacques Audiard — comentado aqui). Se formos escolher uma produção que conjuga qualidade técnica e inteligência discursiva, além do favoritismo derivado de produções anteriores, apostaríamos no ótimo “Conclave” (2024, de Edward Berger), repleto de pistas interessantes sobre a própria conjuntura de seleção na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, que possui diversas similaridades com uma escolha papal no Vaticano. Mas precisamos falar sobre uma obra que, com certeza, será premiada em mais de uma categoria: “O Brutalista” (2024, de Brady Corbet).
Acachapante em trama e realização, “O Brutalista” possui como protagonista um arquiteto húngaro (magistralmente interpretado por Adrien Brody) que esteve preso num campo de concentração nazista, por ser judeu. Após conseguir evadir-se do ambiente letal — sob inúmeras conseqüências físicas e psicológicas, obviamente —, este arquiteto, de nome László Toth, migra para os Estados Unidos da América, a fim de viver com um primo, Attila (Alessandro Nivola), que é casado com uma mulher tão católica quanto lasciva (vivida por Emma Laird). Attila possui uma loja de móveis planejados, e resolve aproveitar os dotes acadêmicos de seu primo, até que ambos são contratados por um jovem mimado (Joe Alwyn) para reformar a biblioteca de seu pai milionário, Harrison Lee Van Buren (esplendidamente vivido pelo ator australiano Guy Pearce) …
A reforma em pauta gasta mais tempo e recursos monetários do que fora planejado, e Harrison fica furioso ao flagrar a sua residência tomada por trabalhadores, expulsando László e sua equipe dali. Meses depois, este milionário vai à procura do profissional húngaro, pois reconhece o seu nome numa revista de decoração, e descobre que ele estudou na conceituada escola de arte vanguardista alemã Bauhaus. De maneira oportunista, Harrison contrata o arquiteto para construir alguns edifícios em homenagem à sua mãe recém-falecida, mas uma delicada interconexão de egos e anseios frustrados será estabelecida: a esposa de László, também sobrevivente de um campo de concentração, encontra-se refugiada na Europa e, enquanto não a reencontra, ele suplanta as suas dores em prostíbulos e através do consumo contumaz de heroína.
Fotografado de maneira exuberante por Lol Crawley, que colaborou com o diretor em seus dois longas-metragens anteriores [“A Infância de um Líder” (2015) e “Vox Lux — O Preço da Fama” (2018)], este filme utiliza um complexo processo de filmagem em 35mm, o VistaVision. Tudo em “O Brutalista” é tão ambicioso quanto o projeto arquitetônico em que os personagens se envolvem, e que desembocará num epílogo estranhíssimo, que desagradou diversos espectadores, pela maneira opulenta com que expõe uma espécie de autocrítica em relação ao que é retratado: há como justificar o sobejo de vaidade, mediante efetividade das obras produzidas? Talvez o filme pergunte muito mais do que responda, não obstante ele incorrer em constrangedores instantes quase telenovelescos, relacionados à participação da personagem de Felicity Jones (numa entrega actancial deveras aquém de seus colegas de elenco): é como se, após atingir alguns píncaros subversivos (um estupro anal, permeado por uma reflexão psicanalítica, durante um transe opiáceo, por exemplo), o diretor sentisse a tentação súbita de um moralismo contraproducente. Mas não perdeu a chance de entregar um dos melhores trabalhos estadunidenses de 2024, felizmente!
Numa desenvoltura adulta que aproveita a contento as mais de três horas de duração, o roteiro deste filme — escrito pelo próprio diretor e sua companheira Mona Fastvold — tematiza os vilipêndios característicos do ‘american way of life’ (rapidamente apreendidos por imigrantes) e beneficia-se de uma equipe técnica perfeitamente entrosada, na qual destacamos a trilha musical grandiloquente de Daniel Blumberg, também colaborador habitual do realizador, a coadjuvação fascinante de Stacy Martin (como a filha de Harrison, Maggie Van Buren), e a direção de arte comprometida com a rudeza do estilo arquitetônico que intitula a produção. O protagonista é mostrado como alguém atormentado, mas não ilibado, a ponto de, num instante de fúria, demitir o amigo que esteve ao seu lado desde os momentos de penúria, Gordon (muito bem vivido pelo excelente Isaach de Bankolé). Não é um filme fácil, em suas intenções discursivas, tanto que ele é acusado por alguns detratores de defender uma questionável tendência sionista. A recorrência do personagem-título em comportamentos reprováveis faz com que haja uma cisão entre aquilo que é ovacionado na fala suntuosa do desfecho (numa bienal artística) e o que é metaforizado nas obras de László Toth, que converte os seus traumas prisionais em fonte principal de inspiração. Na nonagésima sétima edição do Oscar, que ocorre em 02 de março de 2025, “O Brutalista” está merecidamente indicado em dez categorias, sendo o favorito para receber o troféu de Melhor Direção, igualmente obtido no Festival Internacional de Cinema de Veneza e no Globo de Ouro, entre vários outros prêmios. Que assim seja!
Wesley Pereira de Castro.



