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“Quando se muda o corpo, muda-se de sociedade; quando se muda a sociedade, muda-se de alma”: sob quais pretextos conseguimos extrair música da violência?

“Quando se muda o corpo, muda-se de sociedade; quando se muda a sociedade, muda-se de alma”: sob quais pretextos conseguimos extrair música da violência?

Na edição 2024 do Festival Internacional de Cinema de Cannes, a produção francesa — falada quase inteiramente em espanhol — “Emilia Pérez” (2024, de Jacques Audiard) recebeu duas importantes láureas: uma delas foi o importantíssimo Prêmio do Júri; a outra, o Prêmio de Interpretação Feminina, compartilhada entre quatro atrizes, Adriana Paz, Karla Sofía Gascón, Selena Gomez e Zoe Saldaña. Houve quem reclamasse que a presidenta do Júri Oficial, Greta Gerwig, perdeu a chance de realizar algo revolucionário, que seria premiar uma atriz transexual, pela primeira vez, no evento. Porém, vendo o filme, temos que admitir que o compartilhamento foi justo: as quatro atrizes, a despeito dos diferentes tempos de tela, estão igualmente maravilhosas!

Dirigido por um cineasta que já foi contemplado com uma Palma de Ouro — pelo irregular “Dheepan — O Refúgio” (2015) — e que recebera, anos antes, outro prêmio relevante no mesmo festival — o Grand Prix por “O Profeta” (2009), que talvez seja a sua obra-prima —, “Emilia Pérez” confirma o talento inventivo de Jacques Audiard, sendo, desde já, um dos favoritos à indicação de Melhor Filme Internacional, no Oscar 2025. E não será nada imerecido: o filme é impressionante, na maneira como conjuga convenções do melodrama e do realismo policial mexicano com os exageros de um musical ‘pop’ e o discurso identitarista. Porém, evita as fórmulas fáceis: ao invés disso, opta por um percurso emocionalmente ambíguo, que foi condenado por alguns como glamourização da violência.

Numa progressão narrativa que inverte aquilo que é mostrado em “O Profeta”, no que tange ao delineamento moral e comportamental da pessoa protagonista, conhecemos o crudelíssimo traficante Manitas del Monte (vivido pela espanhola Karla Sofía Gascón), que confia à advogada Rita Mora Castro (Zoe Saldaña) o seu desejo de tornar-se mulher. No início, pensa-se que este anseio advém da necessidade de esconder-se de seus inimigos, já que ele desmantelou diversos cartéis de drogas, mas ele insiste que sempre teve esta vontade, mas não podia realizá-la “na pocilga de onde vim”. Casado com a impetuosa Jessi (Selena Gomez), Manitas será exitoso, após algumas agruras, em seu intento transexual e, enquanto mulher, apaixonar-se-á pela viúva de um bandido, Epifanía (Adriana Paz). Porém, quem cometeu tantos crimes numa fase primeva de sua vida não encontrará a redenção tão facilmente…

Permeado por muitas canções, que tematizam desde a vaginoplastia da co-protagonista até o sentimento de estar “presa por algemas de ouro”, externado por Jessi, a trama deste filme possui na personagem de Zoe Saldaña a sua consciência um tanto culpada: no início do filme, ela está redigindo um discurso para o advogado com quem trabalha, que está defendendo um homem que assassinou a esposa e forjou que ela cometeu suicídio. Ciente de que a sua profissão “deixa os ricos mais ricos e os canalhas mais canalhas”, Rita lamenta não ter vida sexual nem ser bem-sucedida pessoalmente, de modo que não hesita quando Manitas a convida para ser a sua assessora, mesmo constatando que será continuamente ameaçada, tanto pelos asseclas quanto pelos opositores do traficante. Ela canta que suas virtudes não são valorizadas em seu país natal e que, dentre outros motivos, isso ocorre porque ela é uma mulher negra. Sente que é mal remunerada e que suas tentativas de modificar algo na sociedade, através dos julgamentos de que participa, são abortadas pelas chantagens dos poderosos, pelos veredictos previamente estabelecidos por quem suborna os juízes. É sob a instauração de uma crise de personalidade que as piores decisões florescem, não é?

É através das possíveis respostas a esta delicada pergunta que o roteiro — escrito pelo próprio diretor — cresce, nas três variações percebidas nos mais de cento e trinta minutos deste filmaço. Em dado momento, Manitas, já convertido em Emilia Pérez, idealiza uma organização social que auxilia os parentes de pessoas desaparecidas a encontrarem os cadáveres ou ossadas de seus entes queridos. Bastante carismática, Emilia convida Jessi e seus filhos a voltarem para o México, alegando ser uma prima do marido dela, que simulou a própria morte. E, mais uma vez, as tensões associadas a quem foi acostumada a deter um enorme poder ressurgem, quando se percebe que a possibilidade de fazer justiça, numa conjuntura urbana demarcada pela onipresença da corrupção, perpassa a necessidade de fazer acordos com aqueles que mais praticam a injustiça. Ou seja, La Lucecita, a organização solidária de Emilia, depende das doações mentárias dos mesmos criminosos que prejudicam as famílias amparadas. É mais uma dentre as inúmeras contradições abordadas pelo enredo, que culmina num inevitável retorno à violência extrema. Na banda sonora, as maravilhosas canções compostas por Clément Ducol (partituras) e Camille (letras), entoadas pelo próprio elenco. Por ser francês, Jacques Audiard foi acusado, por aqueles que desgostaram do filme, de aproveitar-se da realidade complexa de outro país para espetacularizá-la, num gênero tendente à evasão emocional, que é o musical. Mas ele o faz de maneira brilhante e reflexiva, trazendo à baila questões mui discutidas na contemporaneidade. De nossa parte, amamos!

Wesley Pereira de Castro.

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