Quando o filme “Vidas Secas” (1963, de Nelson Pereira dos Santos) foi exibido no Festival Internacional de Cinema de Cannes, em 1964, houve uma comoção inusitada, advinda da insinuação de que o cineasta teria efetivamente assassinado a intérprete canina de Baleia, sacrificada na trama. A encenação de tal seqüência trágica foi tão verossímil que, a fim de aplacar os ânimos de quem realizara a denúncia, foi necessário fazer com que a cadela-atriz viajasse de avião até a França, para provar que estava viva. E esta é apenas uma anedota que circunda a magnificência da adaptação cinematográfica de uma das obras-primas absolutas da literatura brasileira!
Publicado originalmente em 1938, o breve romance “Vidas Secas” impressiona pela crueza de seu relato e pela grandiosidade de seu estilo, cujo pendor regionalista é uma das marcas registradas de seu autor, o alagoano Graciliano Ramos (1892-1953). Já consagrado por conta de seu mergulho existencial na alma de personagens agrestes, delineados em “Caetés” (publicado em 1933), “São Bernardo” (1934) e “Angústia” (1936), este autor atingiu o suprassumo de sua excelência no relato das desventuras migratórias do vaqueiro Fabiano e sua família. Logo no primeiro capítulo, “Mudança”, a contagem de seres viventes baixa de seis para cinco: o papagaio é morto para servir de refeição ao famintos. O afeto é suprimido pela necessidade de comer desde as páginas iniciais…
Na família nordestina concebida por Graciliano Ramos, apenas os pais e a cachorra têm nome – respectivamente, Fabiano, Sinhá Vitória e Baleia. Os filhos do casal são apresentados a partir de suas faixas etárias, nomeados como “o mais velho” e “o mais novo”. Falam pouco, em decorrência da existência prenhe de sofrimentos e da labuta incessante. No afã por justificarem a morte do papagaio, reclamam: “falava pouco”. Segundo o relato, a ave limitava-se a imitar cantos de boiada e a latir, como a cadela. Cada um dá o que recebe, diz um famoso ditado popular nordestino: “não podia deixar de ser mudo. Ordinariamente, a família falava pouco”…
Curiosamente, o autor concede à cachorra Baleia uma sensibilidade sobre-humana em relação às circunstâncias que rodeiam a família sofrida: inteligente, sensata e mui paciente, são inúmeros os apanágios prosopopéicos direcionados à cadela. Num dos momentos mais brilhantes do livro, por exemplo, ela suporta o abraço apertado de um dos meninos da maneira que se segue: “Baleia encolhia-se para não magoá-lo, sofria a carência excessiva. O cheiro dele era bom, mas estava misturado com emanações que vinham da cozinha. Havia ali um osso. Um osso graúdo, cheio de tutano e com alguma carne”. É precisamente Baleia a menos animalizada de toda a família…
A estrutura narrativa de “Vidas Secas” redunda em inevitável circularidade: aos migrantes, cabe a obrigação de seguir caminhando, em direção a algum local onde possam estabelecer-se. Entretanto, quando isso ocorre, as injustiças colonizatórias do sistema capitalista suprimem qualquer estados de bonomia. Que o digam os encontros entre Fabiano e um soldado amarelo no romance. Chega mesmo a ser preso, apenas por não saber reclamar a sua inocência. É aprisionado por ser brutalizado – e para permanecer embrutecido. O aprisionamento cíclico é exposto enquanto ferramenta de controle social, demonstrando que há quem lucre com a manutenção da miséria alheia. Às classes dominantes, é conveniente que hajam os menos esclarecidos. O desfecho em aberto de “Vidas Secas” segue, portanto, dolorosamente atual…
Voltando à sua primorosa adaptação cinematográfica, elogia-se o talento insigne do realizador Nelson Pereira dos Santos (1928-2018) quanto ao entendimento da obra: manteve-se rigorosamente fiel, ainda que suprima alguns eventos do livro – o capítulo “Inverno”, por exemplo – e altere a ordem de outros. É impossível (e desnecessário) precisar se o livro é melhor que o filme ou vice-versa: ambos são absolutamente geniais e correlatos em seus meios de representação. Tanto que, tanto num caso quanto noutro, é inevitável irromper em lágrimas no instante supramencionado, quando a cadela Baleia é morta. “Baleia queria dormir. Acordaria feliz num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme”. Chora-se novamente, enquanto escreve-se esse texto. Impressionante!
Falecido precocemente aos sessenta anos de idade, vítima de um câncer pulmonar, Graciliano Ramos deixou incompleta a sua derradeira obra-prima, “Memórias do Cárcere” (publicado em 1953). Nele, relata as suas experiências enquanto preso político, acusado de vinculação com o Partido Comunista. Foi prefeito da cidade alagoana de Palmeira dos Índios, mas renunciou ao cargo após dois anos. É considerado um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, do mesmo modo que o cineasta que o adaptou é reverenciado como um dos diretores magnos do país. Por motivos anunciados, também coube a este último a excelente conversão cinematográfica do livro memorialista póstumo do escritor. Não há sobreposição nesta relação adaptativa: livros e filmes são igualmente meritórios em suas qualidades sobressalentes e inequívocas. Se estivesse vivo, Graciliano Ramos completaria 127 anos de idade em 27 de outubro de 2019. Um brasileiro imortal, por conseguinte!




Uma resposta
Li em uma crítica, há anos, que Vidas Secas é uma estória elaborada a partir de um conto sobre a cadelinha Baleia. Sua aura humana se deve, aparentemente, ao fato de Graciliano Ramos ter escrito um conto sobre ela, inclusive constando o capítulo de sua morte, que compõe o livro, e desse conto ter feito o livro. Vidas Secas é mesmo uma obra monstra e Graciliano Ramos merece todas as graças por ele.