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…e o Sertão continua a mandar gente para lá: uma homenagem ao aniversário de nascimento de Graciliano Ramos (1892-1953)

…e o Sertão continua a mandar gente para lá: uma homenagem ao aniversário de nascimento de Graciliano Ramos (1892-1953)

Quando o filme “Vidas Secas” (1963, de Nelson Pereira dos Santos) foi exibido no Festival Internacional de Cinema de Cannes, em 1964, houve uma comoção inusitada, advinda da insinuação de que o cineasta teria efetivamente assassinado a intérprete canina de Baleia, sacrificada na trama. A encenação de tal seqüência trágica foi tão verossímil que, a fim de aplacar os ânimos de quem realizara a denúncia, foi necessário fazer com que a cadela-atriz viajasse de avião até a França, para provar que estava viva. E esta é apenas uma anedota que circunda a magnificência da adaptação cinematográfica de uma das obras-primas absolutas da literatura brasileira!

Publicado originalmente em 1938, o breve romance “Vidas Secas” impressiona pela crueza de seu relato e pela grandiosidade de seu estilo, cujo pendor regionalista é uma das marcas registradas de seu autor, o alagoano Graciliano Ramos (1892-1953). Já consagrado por conta de seu mergulho existencial na alma de personagens agrestes, delineados em “Caetés” (publicado em 1933), “São Bernardo” (1934) e “Angústia” (1936), este autor atingiu o suprassumo de sua excelência no relato das desventuras migratórias do vaqueiro Fabiano e sua família. Logo no primeiro capítulo, “Mudança”, a contagem de seres viventes baixa de seis para cinco: o papagaio é morto para servir de refeição ao famintos. O afeto é suprimido pela necessidade de comer desde as páginas iniciais…

Na família nordestina concebida por Graciliano Ramos, apenas os pais e a cachorra têm nome – respectivamente, Fabiano, Sinhá Vitória e Baleia. Os filhos do casal são apresentados a partir de suas faixas etárias, nomeados como “o mais velho” e “o mais novo”. Falam pouco, em decorrência da existência prenhe de sofrimentos e da labuta incessante. No afã por justificarem a morte do papagaio, reclamam: “falava pouco”. Segundo o relato, a ave limitava-se a imitar cantos de boiada e a latir, como a cadela. Cada um dá o que recebe, diz um famoso ditado popular nordestino: “não podia deixar de ser mudo. Ordinariamente, a família falava pouco”

Curiosamente, o autor concede à cachorra Baleia uma sensibilidade sobre-humana em relação às circunstâncias que rodeiam a família sofrida: inteligente, sensata e mui paciente, são inúmeros os apanágios prosopopéicos direcionados à cadela. Num dos momentos mais brilhantes do livro, por exemplo, ela suporta o abraço apertado de um dos meninos da maneira que se segue: “Baleia encolhia-se para não magoá-lo, sofria a carência excessiva. O cheiro dele era bom, mas estava misturado com emanações que vinham da cozinha. Havia ali um osso. Um osso graúdo, cheio de tutano e com alguma carne”. É precisamente Baleia a menos animalizada de toda a família…

A estrutura narrativa de “Vidas Secas” redunda em inevitável circularidade: aos migrantes, cabe a obrigação de seguir caminhando, em direção a algum local onde possam estabelecer-se. Entretanto, quando isso ocorre, as injustiças colonizatórias do sistema capitalista suprimem qualquer estados de bonomia. Que o digam os encontros entre Fabiano e um soldado amarelo no romance. Chega mesmo a ser preso, apenas por não saber reclamar a sua inocência. É aprisionado por ser brutalizado – e para permanecer embrutecido. O aprisionamento cíclico é exposto enquanto ferramenta de controle social, demonstrando que há quem lucre com a manutenção da miséria alheia. Às classes dominantes, é conveniente que hajam os menos esclarecidos. O desfecho em aberto de “Vidas Secas” segue, portanto, dolorosamente atual…

Voltando à sua primorosa adaptação cinematográfica, elogia-se o talento insigne do realizador Nelson Pereira dos Santos (1928-2018) quanto ao entendimento da obra: manteve-se rigorosamente fiel, ainda que suprima alguns eventos do livro – o capítulo “Inverno”, por exemplo – e altere a ordem de outros. É impossível (e desnecessário) precisar se o livro é melhor que o filme ou vice-versa: ambos são absolutamente geniais e correlatos em seus meios de representação. Tanto que, tanto num caso quanto noutro, é inevitável irromper em lágrimas no instante supramencionado, quando a cadela Baleia é morta. “Baleia queria dormir. Acordaria feliz num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme”. Chora-se novamente, enquanto escreve-se esse texto. Impressionante!

Falecido precocemente aos sessenta anos de idade, vítima de um câncer pulmonar, Graciliano Ramos deixou incompleta a sua derradeira obra-prima, “Memórias do Cárcere” (publicado em 1953). Nele, relata as suas experiências enquanto preso político, acusado de vinculação com o Partido Comunista. Foi prefeito da cidade alagoana de Palmeira dos Índios, mas renunciou ao cargo após dois anos. É considerado um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, do mesmo modo que o cineasta que o adaptou é reverenciado como um dos diretores magnos do país. Por motivos anunciados, também coube a este último a excelente conversão cinematográfica do livro memorialista póstumo do escritor. Não há sobreposição nesta relação adaptativa: livros e filmes são igualmente meritórios em suas qualidades sobressalentes e inequívocas. Se estivesse vivo, Graciliano Ramos completaria 127 anos de idade em 27 de outubro de 2019. Um brasileiro imortal, por conseguinte!

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Uma resposta

  1. Li em uma crítica, há anos, que Vidas Secas é uma estória elaborada a partir de um conto sobre a cadelinha Baleia. Sua aura humana se deve, aparentemente, ao fato de Graciliano Ramos ter escrito um conto sobre ela, inclusive constando o capítulo de sua morte, que compõe o livro, e desse conto ter feito o livro. Vidas Secas é mesmo uma obra monstra e Graciliano Ramos merece todas as graças por ele.

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