Nessa semana continuamos a analisar, com base nos rastros das notícias deixados em 20 anos nos jornais Folha de S.Paulo e O Globo, o que levou o Brasil a não querer se reconhecer como membro da comunidade lusófona. Agora, avançamos de modo mais incisivo para denunciar que não foi apenas o não reconhecer, mas a instituição de uma invisibilização que vai da ausência até a rejeição e criminalização da ideia de que o Brasil é parte da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.
No primeiro ano do Governo Lula (2003), a Folha e O Globo buscaram enquadrar o então presidente como uma espécie de agente dos grandes empresários brasileiros. Ele seria uma espécie de intermediário de luxo das empresas privadas que tinham negócios com os países lusófonos, especialmente na África. Apesar do presidente fazer discursos sobre “dividas histórias” em razão da escravidão negra, de justificar sua presença em África por móvitos identitários, os dois jornais buscaram impor, logo de início, uma de agenda econômica que ocultava, silenciava, deixava invisíveis as raízes, os traços histórico-identitários entre Brasil e os países de língua portuguesa, como mais ênfases, os africanos.
As ações da política externa do Governo Lula para África (abertura de embaixadas em vários países, implantação da disciplina nas escolas brasileiras sobre a África, assinatura de vários convênios de educação, saúde, agricultura, etc.) sempre tinham uma base de justificativa nas relações históricas e identitárias. O presidente da República, em seus discursos, buscava associar essas ações a uma dívida histórica. Diante desse cenário, que poderia gerar uma ideia de pertença a uma comunidade e implicar em mobilidades indesejadas para a elite nacional brasileira, além do próprio debate interditado sobre a escravidão no Brasil, a Folha e O Globo passam a agir com mais força para ampliar a invisibilização da CPLP. Um ano depois da posse de Lula, as poucas notícias neles sobre a comunidade lusófona tomaram o rumo da criminalização da aproximação do Brasil com os países lusófonos, de modo especial, os africanos e o Timor-Leste.
Um dos primeiros exemplos está na edição de 28 de julho de 2004, onde O Globo publicou a ida de Lula para uma Conferência da CPLP em São Tomé e Príncipe. O título e a única foto usada dessa notícia destacam a “boa” relação entre Lula e Bongo, presidente do Gabão e chamado de ditador. De fato, Lula esteve de passagem no Gabão, mas o centro da notícia era a conferência da CPLP. O jornal evidencia no título da notícia que o carro usado por Lula foi um Rolls-Royce prateado, que não se vê, cujo proprietário seria o ditador. O carro é apontado como contradição em um país com povo miserável e um ditador rico e corrupto. Apesar de O Globo comemorar o fato de que empresários que acompanhavam Lula ter fechado “bons negócios” no Gabão, a notícia do presidente com o ditador africano é uma experiência que repele qualquer apoio no Brasil. As rejeições e repulsas identitárias, em razão do passado e da possível projeção em razão das dívidas históricas não saldadas, passam a ter maior força no regime do visível proposto pelos jornais.
Em praticamente todas as reportagens, com repórteres que acompanhavam as viagens de Lula pela África, uma informação se repete: o uso de repelente pela grande comitiva no avião presidencial, onde estavam ministros, deputados, empresários e jornalistas brasileiros. Os jornais revelam o medo da doença e do mosquito, do pavor da sujeira em África, uma questão que lembra o Brasil Colônia e a chegada dos europeus nos trópicos, em um misto de curiosidade e pânico diante das doenças atribuídas aos negros e índios. Nas cartas do século XVIII eram comuns expressões como “canibalismo”, “bárbara antropofagia”, “infectados” para se referir ao índio e ao negro, sujos e doentes. Nessas notícias em 2004, informa-se que Lula não usou o repelente e justificou que “pernambucano como eu não precisa disso. Na hora em que o mosquito morde é ele quem morre” (Folha, 27/07/2004, Brasil, p. 4).
O repelente aqui também funciona como metáfora. Os jornais buscam construir as condições para que disparemos ações para rechaçar, proteger, imunizar-se da relação com o Outro, que é perigoso por ser doente, sujo. Todavia, o presidente Lula parece não precisar disso, do repelente porque, ao menos retoricamente, ele se sentia vinculado de modo histórico-identitário com África, acostumado com os mosquitos, o que para os jornais é inaceitável.
No segundo Governo Lula, as viagens do presidente até a África diminuíram, mas as poucas eram cobertas pelos dois jornais, que mantinham a linha narrativa com as seguintes palavras-chave: pobreza, doença, prejuízo ao Brasil, líder dos países pobres, corrupção, tráfico de drogas, crimes e apoio a ditaduras. Em 2010, a Folha mostra isso nas edições de 5 e 6 de julho. O jornal trouxe notícias sobre a CPLP em que a discussão era a entrada da Guiné Equatorial como um país-membro da entidade. A Folha (05/07/2010) diz que Lula passou o dia com o ditador Mbasogo, presidente da Guiné Equatorial, um encontro para “negociar” a entrada dele na CPLP e firmar acordos comerciais. Além de equiparar o ingresso à CPLP a um “negócio”, o jornal vincula, de forma política e definitiva, o presidente e o ditador.
Lula foi recebido “por dezenas de pessoas com bandeirinhas do Brasil e da Guiné Equatorial e camisetas com estampas de ambos os presidentes, lado a lado” (Folha, 05/07/2010, p. 9). O jornal afirma que o povo da Guiné Equatorial vive na miséria e seu presidente é ditador e acusado de matar opositores, além de ser “um dos mandatários mais ricos do mundo”. Contraditoriamente, esse mesmo jornal diz que aquele país tem imensas reservas de petróleo; que é um dos maiores Produtos Internos Brutos da África, sendo “uma república com eleições a cada sete anos” (Folha, 05/07/2010, p. 9).
Na edição do dia seguinte, mesmo sem ter falas diretas do presidente Lula, o título da notícia é uma afirmação atribuída a ele: “Ditador respeita democracia e direitos humanos, diz Lula” (Folha, 06/07/2010, p. 10). A notícia joga a contradição no colo do presidente brasileiro: ditadura e o respeito à democracia e aos direitos humanos. Reforçamos que no texto não existem falas diretas do presidente Lula. No registro, a Folha amplia as “qualificações” do presidente da Guiné: “31 anos no poder, acusado de fraudar eleições e violar os direitos humanos”. Assim como em O Globo, também nas edições da Folha a palavra “ditador” é presença garantida nos títulos e nos textos.
No dia 06/07/2010, a Folha de S.Paulo traz uma frase atribuída ao ministro Celso Amorim, das Relações Exteriores do Brasil, e que é usada para tentar retirar o peso da crítica a Lula por ele ter apoiado o ingresso da Guiné Equatorial na CPLP: “negócios são negócios”. Essa justificativa de via econômica é exatamente o título da notícia em 6 de julho de 2010 de O Globo. Esse jornal até acolhe a lógica econômica da aproximação do Brasil com a Guiné Equatorial, mas não dá trégua ao presidente brasileiro ao iluminar aspectos do acontecimento para reforçar as relações entre Lula e o ditador. Por exemplo, há o culto à personalidade, externada na fotografia utilizada na notícia, e que reforça o vínculo do presidente Lula (sorrindo) com o ditador do país africano. Para confirmar esse imaginário de vínculo, a legenda da foto é categórica: “Lula segura um quadro com sua foto, ao lado do presidente da Guiné Equatorial, considerado um dos políticos mais corruptos do mundo” (O Globo, 06/07/2010, p. 10).
Esse registro não veio isolado na edição de 06 de julho de 2010. Naquele dia, O Globo publicou um editorial em que critica o ingresso da Guiné Equatorial na CPLP, mas uma crítica que era apenas o pano de fundo para condenar Lula por ter se aproximado dos países da África, e da CPLP. O editorial, que é o lugar da voz oficial das Organizações Globo, dona do jornal, é a síntese sobre o julgamento das “más companhias” do presidente brasileiro. O título do editorial é: “Más companhias”. Esse texto denuncia que existem ideólogos no Itamaraty (Ministério de Relações Exteriores do Brasil) que têm dado as cartas na diplomacia brasileira, o que “afasta o Brasil de sua tradição de equilíbrio na política externa”. Essa “tradição de equilíbrio” que o jornal convoca se vincula aos países ricos. A aproximação com as nações negras e pobres da África afastaria, assim, o Brasil dessa “tradição de equilíbrio”, não acertando os passos com a globalização do capital, mas atrelando-o a um passado crioulo que deveria, no entender dos jornais, a ser apagado.
Ao que parece, o problema não é a ditadura e a corrupção em si, pois elas não são lembradas quando o Brasil se aproxima de outros países marcados por essas condições. Nem O Globo nem a Folha, por exemplo, manifestaram-se contra a ditadura da Indonésia que invadiu e manteve um regime de terror no Timor-Leste por 27 anos. Vale reforçar que o Brasil mantinha acordos comerciais com a Indonésia e, talvez isso, justificasse o silenciamento dos jornais. As “más companhias” somente são e serão as africanas, revelando uma seleção jornalística inconfessadamente histórica, identitária, racista e classista. Lembra-nos Schwarcz (2012) que, no início do Brasil República, famílias consideradas um pouco remediadas, mesmo sendo mestiças e morando em áreas afastadas das cidades, nas periferias, tinham pavor em ser confundidas como negras, exatamente porque essas últimas eram “más companhias”.
Também analisa Bento (2002, p. 27) que, “mesmo em situação de pobreza, o branco tem o privilégio simbólico da brancura, o que não é pouca coisa” (Bento, 2002, 27). A aproximação de Lula com as nações africanas faz O Globo afirmar que o Brasil precisaria apagar a “ideologia terceiro-mundista da década de 60” (O Globo, 06/07/2010). A democracia e os direitos humanos também não foram levados em conta quando os jornais saudaram Lula como agente dos grandes empresários brasileiros, um intermediário de “bons negócios” com essas mesmas nações africanas, agora condenadas como ditaduras. Em dado momento, o próprio presidente Lula e seu governo reforçam a posição de que “negócios são negócios”, confirmando os valores cultivados nesses jornais da Casa Grande. Na prática, a defesa dos direitos humanos em O Globo, na Folha de S.Paulo e em outros grandes meios de expressão jornalística no Brasil não passa de uma fumaça retórica que encobre as ações desses atores políticos e dos seus interesses privados, promovendo uma farsa democrática.
Outro aspecto importante é o das fotografias. Nos dois jornais, boa parte das fotos do presidente Lula utilizada para ilustrar as notícias revelava a presença negra, seja do povo, dos dirigentes políticos, de “ditadores”, de militares. Essa associação negra não aconteceu com o presidente FHC. Se a única foto de Fernando Henrique nas notícias da CPLP com personagens negros foi para reforçar a condição do primo branco e rico do brasileiro, com Lula, as fotos com africanos buscam criminalizar todas as figuras do quadro visível, associando-as a um presidente como um deles, à voz deles. Mesmo se vista em destaque, a imagem do presidente Lula mistura-se com as personagens negras, o que pode indicar uma proposta de uma não separação entre o chefe do Executivo do Brasil e os Outros africanos, que todos devemos rejeitar e combater.
Apesar de Lula ser tratado, pontual e inicialmente, como um agente para favorecer os “negócios” privados de empresas brasileiras nos países africanos, essa condição de intermediário foi esporádica e tinha limitações identitárias. A ação mais permanente do Governo Lula com a África, muitas vezes revelando a “dívida histórica”, foi decisiva para que os jornais condenassem nossas “más companhias”. E uma marca visível dessa relação é que nas notícias sobre Lula e a CPLP, as retrancas utilizadas pelos jornais para identificar suas temáticas foram “Terceiro Mundo” e “África”. No Governo FHC, relembremos, as notícias tinham como marcas de “Diplomacia”, “Portugal”, “Governo”.
A criminalização da comunidade lusófona no Brasil não se restringe a participação e aproximação direta do então presidente Lula com a CPLP, e de modo especial com os países africanos. Há significativos rastros do não reconhecimento à criminalização que atravessam as notícias sobre conflitos, os acordos internacionais e até os registros de cultura. A ideia de mobilidade nessa comunidade é, sem dúvida alguma, o maior dispositivo para que os jornais brasileiros produzam uma campanha de rejeição e criminalização da ideia de lusofonia no Brasil. Isso veremos no próximo texto.
Referências
Bento, M. A. S. (2002). Branqueamento e branquitude no Brasil. In: Carone, I.; Bento, M. A. S. (Orgs.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis/RJ: Vozes, p. 25-28.
Schwarcz, L. (2012). Marcas do período; População e sociedade. In: Schwarcz, L. (coord.). A abertura para o mundo 1889-1930. Vol. 3. Rio de Janeiro: Objetiva, p. 19-83.