Cristina Vaz de Almeida
No domínio da saúde (e eventualmente em outros), quando não compreendemos a informação, quando não conseguimos aceder, ou quando não sabemos usar essa informação, é como se estivéssemos de “costas voltadas” para as questões complexas da vida. Toda a envolvência e ambiente estão presentes, mas por diversas razões, não conseguimos aceder, compreender e usar essa informação. Apesar de ela estar lá.
Estão definidos em vários estudos (HLS-EU, 2012; HLS-EU-PT 2014; Espanha, Ávila & Mendes, 2016) os perfis das pessoas com baixa literacia em saúde: são os idosos, os migrantes, as pessoas com baixos rendimentos e condição socioeconómica, as pessoas que têm uma autoperceção má da sua saúde, os desempregados de longa duração (Espanha, Ávila & Mendes, 2016), e ainda as pessoas com elevada literacia ou nível educacional, mas que por razões de stress e ansiedade não assimilam as instruções em saúde, como por exemplo pais que levam os filhos ás urgências (Vaz de Almeida, 2019).
E a literacia em saúde debruça-se precisamente sobre isto: Sobre as competências cognitivas e sociais dos indivíduos, associadas a sua motivação, conhecimentos, habilidades e atributos que lhes permitem rodar as costas e olhar de frente, e responderem à complexidade que o sistema de saúde impõe.
O conceito de literacia em saúde tem evoluído ao longo do tempo, tendo sido Simonds (1974) o seu primeiro autor, que, com uma abordagem educacional, fez a ponte com a educação para a saúde (p. 9). Segundo a Organização Mundial da Saúde (2017), a literacia em saúde inclui autoeficácia, as crenças em saúde e o conhecimento em saúde. (Aldoory, 2017, p. 212).
Enquanto que os primeiros estudos sobre literacia em saúde não atenderam ao contexto em que ocorrem as relações em saúde, atualmente tem-se em conta no estudo da literacia em saúde a importância da influência de todo o ambiente físico e social dos cuidados de saúde (Karuranga e outros, 2017).
Na relação em saúde, para a comunicação ser efetiva, a mensagem tem de ser compreendida, recordada e tem de haver uma ação apropriada (Ley & Spelman, 1967). A questão é que nesta relação, a comunicação é muitas vezes hermética, difícil de compreender e o paciente sai da consulta e esquece grande parte do que ouviu. E esse fato tem consequências nefastas para a sua saúde, para o seu autocuidado e para os resultados em saúde. As pessoas com baixa literacia em saúde geralmente têm pouca compreensão e recordação da informação que ouvem/leem (Schwartzberg, Vangees & Wang, 2005).
A comunicação é poder (Dance, 1970), porque permite, através da compreensão e do conhecimento, estender o poder a outros e tornar comum a vários o que era monopólio de um ou de poucos (p. 206). A sociedade exige, cada vez mais, cidadãos empoderados para fazer face aos desafios que se apresentam em saúde.
A comunicação é “a pedra angular de toda a relação entre paciente e profissional” (Ross & Deverell, 2004, p. 56) e qualquer comunicação implica um compromisso e define a relação (Watzlawick e outros, 1967, p. 47). E sabemos que a comunicação que tende a ser simétrica tem mais sucesso que a comunicação assimétrica (Hon & Grunig, 1999).
A comunicação em saúde representa o “pilar” de tudo (Vaz de Almeida, 2019). Através da comunicação o cidadão tem capacidade para sentir motivação e satisfação, que lhe vai estimulando num ciclo positivo uma maior autoeficácia (entre o saber e o saber-fazer).
É também a comunicação assertiva, clara e positiva que reforça os aspetos técnicos da relação em saúde, a chamada relação de cura (Greenhalgh & Heath, 2010). É esta comunicação em saúde feita à medida, influenciadora (Rubinelli, 2013) que ajuda o paciente e o profissional a estabelecerem uma relação onde é gerada confiança, compromisso envolvimento e abertura. Onde as costas voltadas se voltam, se enfrentam e dialogam para um resultado “mutuamente benéfico” (Ledingham & Bruning, 1998).
Segundo Sørensen e outros (2012), a literacia em saúde é cada vez mais reconhecida como um objetivo de saúde pública e um determinante da saúde, contribuindo para o campo da saúde, influenciada pelos fatores sociais, ambientais e culturais na variedade das populações.
Um investimento nesta literacia contribui para “catapultar o indivíduo de ator secundário na promoção da sua saúde para sujeito principal deste processo, em que ele ganha poder sobre a sua saúde e persistentemente contribui para a sua melhoria” (Saboga-Nunes, 2014, p. 96).
Tabela 1. Alguns números e dados relacionados com literacia em saúde
Mais de 54% das queixas e 45% das preocupações não são levantadas na consulta (Stewart et al., 1979); |
Só uma minoria de profissionais de saúde levantam mais de 60% das maiores preocupações dos pacientes (Maguire et al., 1996); |
Os médicos frequentemente interrompem o paciente demasiado cedo, no início da abertura da consulta, e os pacientes não têm oportunidade de mostrar as maiores preocupações (Beckman & Frankel, 1984); |
Um estilo de “grande controlo” pelos profissionais e um focus prematuro nos problemas médicos pode levar a uma abordagem restrita e a uma consulta menos precisa (Platt & McMath, 1979); |
Os pacientes são passivos, e raramente opinam ou iniciam a conversa sobre aspetos do tratamento, enquanto quem os médicos mencionam o nome dos medicamentos em 78,2% das consultas e as instruções de uso em 86,7% das consultas. (Makoul et al., 1995). |
Os médicos usam de forma regular jargão técnico (linguagem complexa) sem o explicar (Svarstad, 1974; Kripalani, 2010); |
Há problemas significativos com a recordação, memória e compreensão dos pacientes sobre informação em saúde (Dunn et al., 1993); |
Em Portugal 50 % da população portuguesa tem baixa literacia em saúde o que corresponde a mais de 5 milhões de pessoas; |
Na Europa, 49% dos participantes no Questionário Europeu de Literacia em saúde têm inadequada literacia em saúde; |
Nos EUA, 36% (cerca de 77 milhões) de adultos têm “baixa literacia em saúde”; |
No Canadá, seis em cada dez adultos não possuem as competências necessárias para gerir bem seus cuidados de saúde; |
Fontes: Kutner, M., Greenberg, E., Jin, Y., & Paulsen, C. (2006). The Health Literacy of America’s Adults (2003); Pendleton e outros (2003).
Referências
Almeida, C. V. (2019). Modelo de comunicação em saúde ACP: As competências de comunicação no cerne de uma literacia em saúde transversal, holística e prática. In C. Lopes & C. V. Almeida (Coords.), Literacia em saúde na prática (pp. 43-52). Lisboa: Edições ISPA [ebook]
Espanha, R., Avila, P., & Mendes, R. M. (2016). A literacia em saúde em Portugal. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, CIES – IUL.
Greenhalgh, T., & Heath, I. (2010). Measuring quality in the therapeutic relationship. An Inquiry into the quality of general practice in England. UK: The King’s Fund.
Hon, L. C., & Grunig, J.E. (1999). Guidelines for measuring relationships in public relations. Guineville, F.L.: Institute for Public Relations.
Karuranga, S., Sørensen, K., Coleman, C.Mahmud, A. J. (2017). Health Literacy Competencies for European Health Care Personnel. HLRP: Health Literacy Research and Practice, 1(4), e247-256.
Ley, P. & Spelman, M.S. (1967). Communicating with patient. London: Staples Press.
Lopes, C. A., & Almeida, C. V. (2019). Introdução. In C. Lopes & C. V. Almeida (Coords.), Literacia em saúde na prática (pp. 17-23). Lisboa: Edições ISPA. [ebook]
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Kurtz, S.M. (2002). Doctor-Patient Communication: Principles and Practices. Can. J. Neurol. Sci., 29(2)– S23-S29
Pendleton, D. (1983). Doctor-patient communication: A review. In F. Pendleton & J. Hausler (Eds). Doctor-Patient Communication (pp 5-53). London:
Saboga-Nunes, L. (2014). Literacia para a saúde e a conscientização da cidadania positiva. Revista Referência, (III), 94-99.
Simonds, S. K. (1974). Health education as social policy. Health Education Monograph, 2, 1-25.
Schwartzberg, J. G., Cowett, A., Vangeest, J., & Wolf, M. S. (2007). Communication techniques for patients with low health literacy: A survey of physicians, nurses, and pharmacists. Journal Health Behaviour, 31(1), s96-s104.
Sørensen, K., Van den Broucke, S., Fullam, J., Doyle, G., Pelikan, J., Slonska, Z., & Brand, H. (2012). Health Literacy and public health: A systematic review and integration of definitions and models. BMC Public health, 12, 80.